UM PLANETA COM LUZ PRÓPRIA

De início pensei escrever esta crónica sobre a situação lastimável em que a União Europeia mais uma vez se encontra. Cada vez mais parecida na sua organização com o milenar Sacro Império Romano-Germânico – aquele que Napoleão extinguiu em 1806 com um sopro –, a UE deixou-se encurralar por culpa própria na chantagem de tiranetes, que juntam na sua linhagem o pior da extrema-direita com as misérias do estalinismo onde foram forjados

Uma efeméride, todavia, fez-me mudar de ideias. Completam-se hoje 200 anos sobre o nascimento de Friedrich Engels (1820-1895), uma personalidade que, erradamente, aparece reduzida à condição de satélite de Marx. Se existe uma biografia, com intensidade singular na celebração dessa coisa misteriosa que é o estar vivo, é a de Engels. A sua crítica do capitalismo foi feita dos dois lados da barricada. Juntou a inteligência analítica a uma consciência ética radical. Engels nasceu numa família privilegiada da nascente burguesia industrial alemã. Os negócios de seu pai no sector têxtil alemão estendiam-se também à Meca da Revolução Industrial, a Grã-Bretanha. Dando prova de uma capacidade extraordinária de fazer pontes e evitar dolorosas rupturas afectivas, Engels conseguiu conciliar a sua actividade de revolucionário, nas palavras e nos actos (combateu corajosamente contra as tropas prussianas nas revoltas germânicas de 1848-1849, no corpo de voluntários republicanos chefiado por August Willich), com a satisfação parcial da vontade dos pais para se envolver nos negócios, permitindo com isso auxiliar generosamente a família Marx nas suas dificuldades financeiras no exílio de Londres. Foi devido ao seu trabalho em Manchester, na empresa familiar, que ele conheceu uma operária, Mary Burns, com quem viveria até à morte desta em 1863, e que lhe terá servido de guia na descida aos infernos da miséria proletária na Inglaterra vitoriana, de que resultou um pioneiro livro, publicado em 1845

Engels foi uma personalidade tão exuberante como os interesses reflectidos na sua obra, vertida não só nos livros, mas também em milhares de artigos e cartas, sobre temas tão diversos como muitas eram as línguas que dominava, incluindo a nossa. A sua amizade e admiração incondicionais para com Marx, acabaram por esbater a originalidade de muitas das suas contribuições. O seu contributo para o que é hoje a versão completa de O Capital mereceria que o seu nome lhe fosse associado, e os seus títulos autónomos justificam uma leitura por mérito próprio (as traduções para português e comentários das suas obras por José Barata-Moura são do melhor que se fez à escala mundial). Após a morte de Marx, Engels tentou, sem grande sucesso, evitar a transformação da sua visão do mundo numa vulgata dogmática. Contudo, sobre a perenidade do pensamento de ambos, talvez o juízo mais contundente se encontre numa declaração à CNN proferida em 2011 por Warren Buffet, um dos mais ricos entre os super-ricos do mundo, acerca do actual capitalismo neoliberal: “Nos últimos 20 anos tem havido uma guerra de classes, e a minha classe está a ganhar”…

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 28 de Novembro de 2020, página 8.

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