SALTEADORES DA TERRA E DO CÉU

O espectáculo patético de três bilionários (Bezos, Musk e Branson), habituados a comprar tudo o que se mexe à sua volta, a montarem uma mortífera indústria poluente de turismo espacial – que, em simultâneo, alimenta as alterações climáticas e destrói a camada de ozono – sem um protesto organizado das comunidades científicas e dos especialistas espaciais, mostra que a contagem decrescente para o definitivo ajuste de contas da Modernidade acelerou muito mais do que qualquer observador, mesmo entre os mais atentos, poderia supor. As viagens espaciais dos super-ricos são uma das modalidades mais ofensivas de desprezo pela Terra e de ódio à humanidade sofredora, que junto à crusta agoniza com pobreza, pandemia, e alterações climáticas que inundaram a bacia do Reno e incendeiam nos EUA, Canadá e Austrália. A canina subserviência dos governos e o mercenarismo de “cientistas” tarefeiros, dá cobertura a uma pilhagem da Atmosfera e do Espaço Exterior, que passaram a ser privatizados para os super-ricos deixarem a sua urina territorial junto à Linha de Kármán, onde apenas os maiores ladrões e vampiros do planeta e das gentes poderão chegar.

Em tudo o que a humanidade realiza existe a procura de si. A identidade humana nunca é um facto, mas uma tese que deve ser provada. Nunca é um ponto de partida, mas a expectativa de um resultado que só pode ser atingido com perseverança e esforço. Tudo aquilo que foi obra da humanidade europeia está contido na promessa de co-criação anunciada por Pico della Mirandola, em 1486. Aquilo que Deus concedeu a Adão não foi uma natureza definida e acabada, como a de todas as outras criaturas, mas sim uma missão: a tarefa de auto-realização. Na Modernidade as caravelas partiram para descobrir todas as latitudes e longitudes, mas o pensamento ainda foi mais longe. “A filosofia útil” de Descartes prolongava e afinava a competência técnica invocada por Thomas More como motivo de legitimação da ocupação de terras agrícolas alheias. Em Campanella e Francis Bacon vislumbrava-se uma epistemocracia. O poder unia-se ao conhecimento para se amplificar como poder. A concepção de ciência transforma-se radicalmente. A teoria pura, contemplativa perde prestígio. Só o conhecimento que visa, através da verdade objectiva, modificar o mundo em favor do homem, intensificando o seu poder sobre ele, e o próprio desempenho das suas funções corporais, nomeadamente prolongando a esperança de vida saudável, só esse tipo de conhecimento merece ser cultivado1.

Antes da modernidade, a via para o autoconhecimento era de recorte ético, e às vezes também político, no sentido da conexão que entre os dois domínios estabelecia Aristóteles. Nessa medida, a República de Platão pode ser considerada como o arquétipo da utopia ético-política clássica. Na modernidade, o autoconhecimento efectua-se pela via da tecnociência, o conhecimento tornado vivo no acto da sua aplicação e replicação, potencialmente infinitas. A utopia moderna é de natureza técnica. Ao contrário da utopia clássica, que permanece como um horizonte reitor, mas sempre por alcançar, a utopia tecnológica da modernidade é um programa de obras a concretizar. A nossa época parece ter substituído a “consciência antecipativa” (das antizipierende Bewusstsein), de que fala Ernst Bloch, por uma multidão de delírios e de simulacros, não por défice, mas sim por excesso de utopia2. A utopia moderna está atrás de nós. O seu programa foi plenamente realizado. O nosso desgraçado futuro é o preço a pagar pelo sucesso dessa realização. Se tivesse sido um filósofo e não um químico a baptizar a nossa época (o Antropocénico, de Paul Crutzen), o nome escolhido poderia bem ter sido: Utopicénico, a época da utopia, realizada até ao derradeiro esgotamento do corpo do mundo3.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 28 de julho de 2021

1 Viriato Soromenho -Marques, A Utopia de Thomas More. Encruzilhada de Antigos e Modernos. Breves Notas Críticas, Sessão comemorativa do V Centenário da Utopia, de Thomas More, Lisboa, edição conjunta da Academia de Marinha-Academia das Ciências de Lisboa-Instituto de Cultura Europeia e Atlântica, 201 J, pp. 19-26

2 Ernst Bloch, Das Prinzip Hoffnung, Gesamtausgabe, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, Band 5, 1959, p. 47.

3 Apresentei a proposta de uma época de “Utopiacene” na minha comunicação: “Modern and Ancient Utopias in Critical Perspective”,  Lisbon, Conference 500 Years of Utopia, promoted by the Utopian Studies Society, New University of Lisbon,  5-10 July 2016.

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