PANDEMIA E HIERARQUIA DE VALORES

Se o SARS-CoV 2 fosse uma arma, seria quase perfeita. A arma mais eficaz não é a mais letal, mas aquela que causa mais feridos de longa duração, que sobrecarrega as estruturas logísticas e hospitalares, que semeia o medo e a discórdia, que diminui a capacidade de luta através da entropia e desmoralização da sociedade. É exactamente o que estamos a observar – de modo ainda mais refinado do que na Primavera – nestes primeiros passos da segunda vaga da COVID-19.

Estamos num momento de encruzilhada em toda a Europa. Seria conveniente analisarmos dois “pontos cegos” fundamentais no modo como encaramos o que está a acontecer. A sua elucidação poderá ajudar-nos, como cidadãos, a fazer um juízo crítico e a agir em conformidade. O primeiro aspecto negligenciado prende-se com a falta de humildade de muitas das opiniões e críticas à acção dos governos. É claro que os governos devem ser escrutinados e criticados, o que é inadmissível é o caudal de críticas insensatas, vindas também de peritos, que arrogantemente escamoteiam a colossal ignorância que ainda temos sobre este novo coronavírus. Recordo a ligeireza como alguns especialistas se têm atrevido a prometer vacinas para datas próximas, mantendo-se imperturbáveis perante o número crescente de testes que são interrompidos por efeitos indesejáveis na saúde dos voluntários. Ou ainda, a sobranceria como responsáveis de saúde pública falam em “imunidade de grupo”, para justificar os erros grosseiros cometidos, por exemplo, pelas autoridades de saúde suecas.

O outro pressuposto inconsciente, que tem gerado muitos equívocos, é a recalcada necessidade de reconhecer a existência de uma hierarquia de valores nas políticas de combate à COVID-19. Nas novas medidas propostas pelo governo – de tornar obrigatório o uso de máscaras em mais locais, assim como o download da aplicação Stayaway Covid – importa ter em conta que os direitos de privacidade, devendo ser salvaguardados, têm, contudo, um peso inferior ao do direito à vida, sobretudo quando este depender da capacidade de evitar a propagação da doença. A questão correcta é a de saber se essa aplicação tem ou não eficácia, mesmo depois de ser universalizada (o que parece não estar ainda esclarecido). O desprezo pelo direito à vida tem unido uma frente bastante insólita e disparatada que vai de Trump e Bolsonaro a intelectuais de “esquerda”, como Giorgio Agamben. Para Trump, a vida dos mais frágeis não pode parar o curso normal dos negócios. Para Agamben, só um Leviatã tirânico seria capaz, para salvar a “vida nua” dos cidadãos, de os confinar compulsivamente… Os Estados europeus estão a devolver à autodisciplina dos cidadãos a tarefa de evitar novo confinamento. Trata-se de conciliar a liberdade individual com a responsabilidade que, em tempos pandémicos, cada um tem pelo direito à vida de todos os outros. Se as democracias europeias falharem na defesa da vida, todos conhecemos como abundam autoritarismos que a prometem salvar, em troca do sacrifício de todos os outros direitos que a tornam digna de ser vivida.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de sábado, 17 de Outubro 2020, página 10.

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Paulo Rodrigues

O aproveitamento político da ação governativa em relação à pandemia tem sido evidente.
Desde a agenda do populismo reaccionário da nova direita Portuguesa até à tentativa de impor os oligarcas privados da saúde no SNS, vale tudo.
Esquecem todos que o desmantelamento do SNS tem sido um dos mantras do semestre europeu, tão entusiasticamente implementado por quem agora critica o governo.
Esquecem as dezenas de hospitais que fecharam e que agora talvez fizessem falta.
Esquecem as centenas de escolas que fecharam e que agora talvez fizessem falta.