O “BUSINESS PLAN” DO NIILISMO ECOLÓGICO

Há algo de profundamente patológico na noosfera, ou dito de outro mundo, na constelação de representações culturais do mundo contemporâneo sobre a sua própria agonia. Quarenta anos de neoliberalismo planetário debilitaram gravemente a política como horizonte de escolha e liberdade. Se no final da II Guerra Mundial, o nome dos grandes estadistas preenchia o imaginário colectivo, sendo daí que surgia a capacidade de inovação na engenharia social (estado social), na economia (o capitalismo regulado) na diplomacia (as Nações Unidas como muralha contra novas guerras de aniquilação), hoje os políticos que chegam ao conhecimento público têm de imitar as “estrelas” do reality show. Pelo contrário, os bilionários disputam com os semideuses de Hollywood uma fama global. Não deixa de ser sintomático perceber que, perante o insucesso, irrelevância e falta de credibilidade dos governos na mobilização perante a crise existencial do ambiente e clima, sejam os bilionários a assumir uma espécie de “liderança” simbólica. Destaco dois. Elon Musk, numa trajectória voltada para o espectáculo, para a obtenção de ganhos bolsistas através do anúncio de objectivos contraditórios (salvar a Terra e colonizar Marte, como se fossem sinónimos) e com metas temporais irrealistas. Bill Gates, por seu turno, descobriu as alterações climáticas em 2008, abriu o seu olhar aos problemas existenciais da humanidade, bem mais cruciais do que o combate à malária, e agora publicou com alarde na Penguin um livro de 272 pp. onde surge como campeão no combate ao “Desastre Climático”, identificando as soluções já existentes e as inovações necessárias. Trata-se de um livro que, dentro do quadro mental fortemente focado de um bilionário, poderá ser designado como “bem-intencionado”, o que não impede muitas simplificações de neófito no assunto climático. Muito voluntarismo, inevitável num dos mais poderosos homens vivos. Há 29 anos, o best-seller sobre a crise ambiental e climática pertenceu ao futuro Vice-Presidente Al Gore (A Terra em busca de Equilíbrio). Um livro muitíssimo mais denso e complexo do que o de Bill Gates. Este, está demasiado parecido a um “business plan” onde até o apocalipse é um bom pretexto para multiplicar o capital. Para salvar o mundo, vale tudo, desde o regresso em força ao nuclear assim como as arriscadíssimas investidas na geoengenharia. Bill Gates aposta em todos os tabuleiros. Talvez o mundo não se salve, mas dificilmente o investimento não trará copioso lucro.

Durante os 11 mil anos que nos separam do final da última glaciação, a época geológica designada como “holocénico”, a humanidade conseguiu irromper para a História devido às condições ambientais e climáticas altamente favoráveis. Em pouco mais de dois séculos, e sobretudo nos últimos 70 anos, a voragem do crescimento material e do consumismo – que se traduziu também na enorme redução dos habitats naturais e da biodiversidade – foi alimentada pelo uso maciço de combustíveis fósseis. Mudámos de tal modo a estrutura química da atmosfera, aumentando as concentrações de dióxido de carbono e de outros gases de efeito de estufa, que estamos a entrar na primeira, e muito provavelmente última, mudança climática abrupta antropogénica. Ao longo das próximas décadas, já para não falar nos próximos séculos, as condições de habitabilidade da Terra vão ser objecto de uma enorme pressão, que, tudo o parece indiciar, passará da erosão para a ruptura. As zonas costeiras serão varridas pela crescentemente veloz subida do NMM (nível médio do mar), a produtividade agrícola será posta em causa pelo aumento dos fenómenos meteorológicos extremos (secas, chuvas torrenciais, ventos ciclónicos…), o crescimento exponencial do número de refugiados ambientais aumentará o sofrimento e levará a conflitos cada vez mais violentos, de que o actual aumento da xenofobia e do populismo na Europa, EUA e noutras partes do planeta constitui apenas um comparativamente ameno prefácio.

Na reflexão de Nietzsche sobre o niilismo podemos identificar uma dezena de variantes desse conceito, mas nenhuma delas corresponde ao que estamos a ver acontecer à nossa frente. A humanidade moderna, armada pela desmesura tecnocientífica, transformou-se na maior força plástica operante na Terra. Uma força tão irracional, primitiva e moralmente neutra como um furacão, um terramoto, ou um asteróide atraído pelo campo gravitacional do nosso planeta. Ninguém pensou a verdade do nosso tempo. Longe de ser um processo cultural milenar, associado à filosofia idealista e ao monoteísmo, o niilismo transformou-se no ponto de convergência da história humana. A humanidade ocidental, que nas suas representações culturais e tecnológicas hoje se confunde com a humanidade inteira, transformou a religião do progresso na febril vertigem da destruição de uma Terra que lhe foi dada graciosamente no misterioso e lento processo de constituição natural do mundo a que chamamos nosso. Possuídos por um ímpeto imparável e uma arrogância cega dedicámo-nos, com afinco, a transformar o Jardim do Éden num deserto global. Transportámos o nada, como valor, para o coração físico das coias. O nosso niilismo de tipo novo, não se limita a ser um niilismo objectivo. É um niilismo ontológico. A história humana parece tender, inexoravelmente, para desaguar no grande estuário do Nada.

Viriato Soromenho-Marques

Crónica de Ecologia JL, edição de 10 de Março de 2021, página 29.

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