“A Noite do Mundo” (para usar uma expressão de Heidegger) em que estamos a mergulhar, foi preparada, como tenho referido noutras crónicas, pela convergência no triângulo da modernidade dos seus três vértices: tecnociência, economia de mercado e Estado soberano. Este terceiro fator de cegueira atinge diretamente o coração das relações internacionais, concebidas de acordo com o modelo herdado dos tratados de Vestefália, que reconstruiu o sistema internacional europeu no final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). A sua compreensão intrínseca e rigidamente mecânica da soberania manteve o direito internacional, a geopolítica e a diplomacia sob o feitiço enviesado da Realpolitik, incapaz de filtrar a rápida e perigosa transformação antropogénica do software planetário.
De facto, existe uma forte congruência entre estes três atores-motores da civilização contemporânea, nascidos no mesmo período da história europeia. Estes três elementos de um autêntico triunvirato, sem rival no mundo contemporâneo, partilham uma estrutura interna muito semelhante em aspetos fundamentais. Estão unidos pela procura de uma eficácia crescente na transformação do mundo. A ciência foi movida pelo seu casamento crescente com a tecnologia e as suas maravilhas. A economia de mercado foi alimentada pelo imperativo fundamental do investimento, da expansão e da multiplicação sem limites do capital. O Estado moderno foi impulsionado pela tentativa tenaz de afirmar a validade dos mitos maiores da soberania e da autonomia. Esta tripla convergência densifica-se numa tripla fragmentação. A ciência divide-se em áreas disciplinares, epistemologicamente diferenciadas e até distantes, unidas por uma agenda operacional ditada pelo exterior, seja a segurança nacional (como o Projeto Manhattan que permitiu aos EUA vencer a corrida à produção da bomba atómica) ou objetivos empresariais privados. A economia, enquanto teoria e atividade prática, centra-se apenas nos seus modelos internos e objetivos instrumentais, visando o crescimento ilimitado da produção, do consumo e dos lucros. O que está para além disso são externalidades que podem ser postas de lado no funcionamento tanto do pensamento económico como da sua prática. O tipo ideal de empresa numa “sociedade livre” é retratado por Milton Friedman no seu ensaio clássico de 1970, que afirma sem rodeios que não deve existir qualquer coisa como “responsabilidade social das empresas”. Essa tarefa deve ser atribuída às políticas governamentais e não às empresas privadas, cuja função é maximizar os lucros para os seus “acionistas” (1). Por último, o Estado olha para o planeta através da lente da projeção territorial do poder, completamente alheio ao complexo funcionamento ecológico do Sistema Terrestre, preocupado apenas com o que está dentro da esfera da sua soberania, e em grande parte indiferente a tudo e a todos que estão para além das suas fronteiras.
O ativismo transformador específico do software partilhado por estes três grandes atores institucionais compensa o que lhes falta em prudência e capacidade de reflexão crítica e estratégica. Apenas uma vez, no auge da Guerra Fria, quando a possibilidade de um conflito nuclear limitado crescia em solo europeu, ocorreu um avanço epistemológico que evitou uma terceira guerra mundial, poupando o mundo ao impacto destrutivo total dessas armas de destruição maciça. A consciência da Destruição Mútua Assegurada (MAD) foi aceite – pelo menos no período final da Guerra Fria – por todas as partes envolvidas. Não fazia sentido continuar a caminhar rumo a uma guerra em que não haveria vencedores, apenas vencidos.
As lições da Guerra Fria parecem ter sido completamente esquecidas, inclusive no terreno estritamente político-militar, como a atual guerra europeia o parece comprovar. É surpreendente verificar como tem sido subestimado o risco de escalada nuclear numa guerra aberta onde direta e indiretamente participam, para além da Rússia, mais três potências nucleares da OTAN. As lições da MAD poderiam ser muito úteis para a crise global do ambiente e clima. De facto, atualmente, assistimos a uma corrida entre Estados que estão envolvidos numa verdadeira dinâmica de destruição ambiental mútua (MED). No entanto, ao contrário do que aconteceu depois de 1985 com as armas nucleares, e apesar de todas as catástrofes ecológicas e humanas atuais (alterações climáticas, perda de biodiversidade, degradação dos solos, refugiados ambientais, etc), ninguém ousou verdadeiramente fazer o levantamento de todas as consequências deste processo entrópico e exigir, com uma voz forte e uma posição resoluta, que esta corrida para o abismo seja travada. Se quisermos estar à altura do desafio da crise ambiental e climática global e evitar cair num cenário hobbesiano de “guerra de todos contra todos” pelos últimos despojos de um planeta devastado, teremos de ser capazes de derrotar os nossos próprios demónios. A nossa principal arma será a construção de uma cultura da “cooperação obrigatória” para enfrentar os perigos que todos partilhamos (2).
Contudo, para que essa cooperação fosse possível seria necessário que houvesse uma revolução epistemológica, no sentido de Thomas S Kuhn (1962), na teoria política das relações internacionais e do direito internacional. Precisamos de dois novos conceitos para dar sentido à esfera da soberania. Em vez de ficarmos arreigados a uma ultrapassada visão de soberania estática e territorial – que se traduz nas fronteiras rígidas que demarcam os territórios emersos, as zonas económicas exclusivas e os espaços aéreos – precisaríamos de integrar as lições que a novel aliança das Ciências do Sistema-Terra nos ensinam. Recordemos o que nos diz o seu principal fundador “Basicamente, o “Sistema Terra” refere-se aos processos físicos, químicos e biológicos que interagem entre si e ligam a atmosfera, a criosfera (gelo), a terra, o oceano e a litosfera. Estes processos criam ‘propriedades emergentes’ – ou seja, propriedades e características do Sistema Terra como um todo, que surgem da interação entre estas esferas. A temperatura média global de superfície é um bom exemplo – é uma propriedade do Sistema Terra como um todo.” (3).
Seria isto uma perda de soberania? Não, pelo contrário, seria o seu alargamento. No tempo da crise global do ambiente e clima, a tradicional soberania territorial exclusiva necessita de ser suportada por uma nova, mas complementar, soberania partilhada sobre o património comum da humanidade representado pelas dinâmicas e processos funcionais de matéria e energia, que geram os serviços de suporte à vida dos oceanos e da atmosfera, transversais a todo o território planetário. Contra toda a vaga de irracionalidade que campeia hoje pelo mundo, importa reafirmar a necessidade de uma nova habitação da Terra. Neste novo condomínio, como desde 2007 defende Paulo Magalhães, os Estado serão exclusivamente soberanos sobre os seus territórios (frações), mas deverão exercer uma soberania partilhada sobre as funções integrantes e transversais a todo o Sistema-Terra (as partes/serviços comuns do condomínio) (4). Quem quiser ficar a defender apenas a sua anquilosada soberania territorial, construindo um castelo intransponível, acabará por morrer à sede no seu próprio deserto.
Viriato Soromenho-Marques
Referências
- Milton Friedman (1970, September 13) “The social responsibility of business is to increase its profits”. The New York Times Magazine, 1970, September 13.
- Soromenho-Marques V (2016) “From mutual assured destruction to compulsory cooperation”. In: Magalhães P, Steffen W, Bosselmann K, Aragão A, Soromenho-Marques V (eds) SOS treaty. The safe operating space treaty. A new approach to managing the use of the earth system. Cambridge Scholars Publishing, Cambridge, UK, pp 274–288
- Will Steffen & Jamie Morgan, (2021) “From the Paris Agreement to the Anthropocene and Planetary Boundaries Framework: an interview with Will Steffen”, Globalizations, 18:7, 1298 1310, DOI: 10.1080/14747731.2021.1940070
- Paulo Magalhães, O Condomínio da Terra. Das Alterações Climáticas a uma Nova Concepção Jurídica do Planeta, Coimbra Edições Almedina, 2007.
8 200c.
Soromenho-Marques, Viriato, “Porque Precisamos de Dupla Soberania e de Soberania Partilhada?”, Jornal de Letras, 3 de abril de 2024, página 32.