O ANTROPOCENO é este lapso temporal onde nos movemos, em que a velocidade e intensidade da história humana capturam para a sua esfera de ação a própria temporalidade da Terra. É esse período, recente e provavelmente curto, em que a cronologia geológica, medida em milhões de anos, se vê submetida ao voraz e veloz império humano sobre o Sistema-Terra.
O RUMO sobre o caminho a seguir perante a encruzilhada do Antropoceno não pertence ao domínio das ciências naturais, ou da ficção científica. Apesar das enormes forças da inércia, que causam um generalizado sentimento de impotência, de TINA (There is no Alternative), a verdade é que as decisões caberão sempre aos campos da política, da economia, das relações internacionais e do poder militar em estado puro. Isso irá ocorrer no futuro, à semelhança do que ocorreu no passado. As decisões em matéria tecnológica e energética foram tomadas pelas grandes potências e suas elites ao longo dos dois últimos séculos e meio. As ciências naturais são instrumentais para decifrar o modo como a vontade de poder, sob todas as suas formas está, pela primeira vez na história humana, a destruir o palco para a continuidade histórica, ferindo mortalmente as gerações futuras antes mesmo de estas serem capazes de ter consciência da agressão de que são vítimas. A sociedade civil move-se. As manifestações pacíficas e alegres das organizações ambientalistas dos anos 70 a 90 vão dando lugar a protestos mais duros. Em 2018, uma menina sueca de 15 anos, Greta Thunberg, iniciou um protesto mundial de adolescentes do ensino secundário, que tomaram consciência de que lhe estão a roubar o chão do futuro. Na Grã-Bretanha, inspirados por académicos que já não acreditam no milagre da inversão de rumo, organizações como a Extinction Rebellion levam a resistência civil ao seu limite (McBrien, 2016: 116-137; Bendell, 2018). À medida que a degradação ambiental e climática prossiga destruindo as possibilidades de segurança, trabalho, habitação, colocando mesmo em risco de malnutrição as populações de países outrora prósperos, a revolta violenta substituirá a resistência civil pacífica. Mas a violência começa sempre com os poderosos. Em 1982, a gigante petrolífera Exxon ocultou um relatório sobre os futuros impactos catastróficos do “efeito de estufa”, produzido pelo seu próprio departamento científico. Depois disso, essa companhia começou a financiar agências de comunicação destinadas a denegrir a comunidade científica do Sistema-Terra e a criar confusão e dúvidas no público, baseadas em falsidades fabricadas (Supran, G. and Oreskes, N., 2020).
O ATUAL curso autodestrutivo do Antropoceno não foi uma fatalidade. A história ambiental dos últimos dois séculos mostra-nos que o ataque ao equilíbrio do Sistema-Terra e a devastação do ambiente acompanhou a afirmação dos poderes imperiais. Se analisarmos por exemplo a história dos combustíveis fósseis, verificamos que o ciclo do carvão, que atingiu o seu pico em 1910, foi completamente dominado pelo imperialismo britânico. O ciclo do petróleo, com pico em 1970, foi dominado pela hegemonia mundial dos EUA. Ainda, em 1980, 50% de todas as emissões de gases com efeitos de estufa tinham como origem ou a Grã-Bretanha ou os EUA, dando origem à tese do Angloceno, que mais do que uma potencial alternativa ao Antropoceno, é uma chamada de atenção às responsabilidades diferenciadas dos povos e regiões do mundo, para não alijarmos, injustamente, sobre os ombros da humanidade inteira o ónus pelo estado deplorável a que se chegou. Por outro lado, o modo como o carvão e o petróleo conquistaram os seus mercados foi resultado de uma luta dos atores económicos pelo controlo, fora da esfera do olhar público, dos poderes legislativo e executivo, sem qualquer consideração pelos consumidores-cidadãos e ainda menos pelo ambiente. No final do século XIX existiam nos EUA cerca de 6 milhões de moinhos eólicos industriais que produziam energia renovável e descentralizada. A sua substituição por eletricidade obtida através da queima de carvão em grandes centrais termoelétricas só se completou depois da II Guerra Mundial. Na Florida ou na Califórnia o mesmo aconteceu com o aquecimento dos edifícios, que era feito através de painéis solares térmicos. Só em 1950, a General Electric conseguiu impor o aquecimento doméstico elétrico, dispendioso e ambientalmente nocivo (Fressoz, 2016: 29-36; Fressoz & Bonneuil, 2013; Fressoz & Locher, 2020). De modo análogo, entre as divergências evidentes que opõem a Rússia e os EUA na guerra da Ucrânia, existem interesses convergentes entre o Kremlin – que tem nos combustíveis fósseis um ativo e uma arma estratégica – e os setores empresariais e políticos dos combustíveis fósseis que controlam com mão de ferro o Congresso dos EUA desde 1997. Ambos beneficiam do recuo, provavelmente irrecuperável, dos setores das energias alternativas, que tinham na União Europeia um bastião. Mesmo que a guerra da Ucrânia não descambe numa tragédia ainda maior, os europeus já são perdedores líquidos deste conflito.
Referências: McBrien, Justin, “Accumulating Extinction: Planetary Catastrophism in the Necrocene”, in: Jason W. Moore (editor), Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland, PM Press, 2016, 116-137; W.E. Rees, “Ecological economics for humanity’s plague phase”, Ecological Economics, 169 (March 2020), https://doi.org/10.1016/j.ecolecon.2019.106519; Bendell, Jem. 2018. Deep Adaptation: A Map for Navigating Climate Tragedy. Occasional Paper, Institute of Leadership & Sustainability (IFLAS), University of Cumbria http://www.lifeworth.com/deepadaptation.pdf ; Supran, G. and Oreskes, N., “Assessing ExxonMobil’s climate change communications (1977–2014)” Res. Lett. 12 084019 Environmental Research. Letters, 15 (2020) 119401 https://doi.org/10.1088/1748-9326/ab89d5 ; Fressoz, Jean-Baptiste, « L’Anthropocène : quand l’histoire humaine rencontre l’histoire de la Terre », Didactica Historica 2 , Neuchâtel, Éditions Alphil-Presses universitaires suisses, 2016, pp. 29-36 ; Fressoz, Jean-Baptiste, Bonneuil,Christophe : L’événement Anthropocène. La Terre, l’histoire et nous, Paris, Seuil, 2013 ; Fressoz, Jean-Baptiste & Locher, Fabien, Les Révoltes du ciel. Une histoire du changement climatique XVe-XXe siècle, Seuil, 2020.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 14 de junho de 2023, p. 30.