POLÍTICA DE NAUFRÁGIO

No dia em que escrevo este artigo, Portugal confirmou-se na liderança mundial dos países mais tragicamente atingidos pela pandemia da COVID-19. Pela primeira vez registaram-se, num só dia, 218 mortos. Na altura em que o leitor chegar a estas palavras, acredito que as Escolas já se encontrem encerradas, contra a vontade do governo. Como foi possível chegarmos a esta situação, sem ser pela exclusiva evocação do atrito e do cansaço desta longa crise? Seguindo a explicação mais imediata: apesar de estar à frente de um governo minoritário, António Costa, respaldado por um Presidente da República, que há muito o parece seguir incondicionalmente, e beneficiando de uma oposição desvitalizada, resolveu ceder a uma espécie de hubris dos políticos profissionais: confundir vontade com realidade, teimosia com determinação.

Perder o rumo

Desde Dezembro de 2020 que o governo tem sido um factor de instabilidade e de agravamento da crise pandémica. Em particular, o PM tem coleccionado erros sucessivos, traduzindo-se num aumento do sofrimento e da mortalidade que irão manchar o seu lugar na história da III República. No dia 11 de Dezembro (que registou 62 óbitos), investigadores das Universidades do Porto e de Lisboa publicaram projecções coincidentes sobre as consequências de uma “abertura” no Natal: a reunião e deslocamento dos agregados familiares por todo o país, com as respectivas cargas virais ocultas, poderia provocar até ao final de Janeiro de 2021 um excesso de mortalidade evitável de 1 500 pessoas. Mostrando ter abandonado a prudência com que de início ajudou a gerir a pandemia, o PM resolveu tomar uma decisão salomónica: liberalizar no Natal e “travar” no Ano Novo! Em vez de proteger a população de si própria, com o vigor de uma determinação esclarecida e pela força do exemplo, o PM transformou o Natal numa espécie de bizarro direito constitucional, que desembocou neste doloroso beco em que nos encontramos encurralados.

Apesar deste modo de lidar com a pandemia ser grosseiro, ignorando o saber acumulado e a experiência histórica no combate a calamidades deste tipo, António Costa ainda iria confundir mais o estado das coisas. No dia 13 de Janeiro (foram contabilizados 10 506 casos e 156 mortes), o PM voltou a anunciar um novo período de confinamento. As palavras revelavam incongruências, inexactidões e omissões. Forçando a verdade, Costa “explicou” a manutenção das escolas abertas – o que implica um quarto da população portuguesa em circulação diária! – pela falta de consenso entre os especialistas, quando, de facto, a reunião no Infarmed revelou uma maioria esmagadora de opiniões favoráveis ao encerramento total ou parcial (ensino secundário e superior) das escolas. Finalmente, nem uma palavra de autocrítica sobre a decisão de relaxar o Natal. No dia 18, ao anunciar o “reforço” das medidas, o PM voltou a justificar, com estudos desconhecidos na literatura de referência, a abertura das escolas. Disfarçou a catástrofe natalícia, e culpou o povo português pelos erros e hesitações da sua própria estratégia. Quando um governante recusa admitir responsabilidades, e acusa o povo de não estar à altura dos desafios que o governo ajudou a agravar e densificar, é porque se encontra no limite do esgotamento.

A verdade objectiva é despótica

Hannah Arendt já tinha enunciado o problema em 1967, no seu ensaio, Verdade e Política. Os políticos em geral, incluindo os de sistemas democráticos, têm muita dificuldade em aceitar o “carácter despótico” da verdade objectiva. Seja ela o poder expansivo de uma pandemia, ou a inevitabilidade de “pontos de viragem” (tipping points) irreversíveis na crise ambiental. António Costa resolveu desprezar os conselhos dos peritos e lançar-se naquilo em, que é mestre: a arte do compromisso e da negociação. Infelizmente, a Covid-19 não faz concessões e não perdoa erros. Em poucas semanas, o “milagre português” da Primavera de 2020 foi transformado na tragédia deste Inverno, que nos atira para os piores números mundiais em infecções e mortos. A pandemia faz parte, como as alterações climáticas e a crise ambiental em geral, de ameaças existenciais e gigantescas, complexas, com raízes globais e impactos geograficamente diferenciados. O falhanço da resposta portuguesa à pandemia é o fracasso de uma maneira de fazer política baseada no tratamento dos cidadãos como eleitores-clientes, que devem ser bajulados, deixando de lado a responsabilidade de ser objectivo no juízo e firme na acção, que caracteriza o verdadeiro estadista. O governo não esteve sozinho no descontrolo da pandemia. Tanto da parte do Presidente da República como do lado dos partidos da oposição também ninguém teve coragem de falar verdade aos eleitores sobre os perigos pandémicos do Natal. E mesmo fora da esfera política, os Reitores das Universidades Portuguesas mantiveram-se teimosamente agarrados às aulas presenciais, ignorando os riscos associados, até já não haver outra saída.

O governo lesou fortemente a capacidade performativa do Estado, e sobretudo quebrou os laços de confiança que são essenciais, sobretudo em períodos de excepcional dificuldade. A crise sanitária será acompanhada por profundos impactos na economia (que não pode estar bem sem a pandemia estar debelada), na sociedade, no próprio sistema político, no nosso amor-próprio. Será, provavelmente, a novel e truculenta extrema-direita que, afinando o discurso, irá tirar rendimento da deriva em que o país descambou. Neste momento, estamos entregues a nós próprios, e ao cuidado daqueles heróis e heroínas, que contra todo o abandono e desesperança a que foram votados, lutam nos hospitais para resgatar desta tragédia mortífera o maior número de vidas possível. São essas mulheres e homens que nos fazem acreditar que a sociedade ainda poderá sobreviver ao naufrágio do Estado.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 27 de Janeiro de 2021

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Paulo Rodrigues

Nós Portugueses – ocidentais apesar de tudo – não quisemos saber se as crianças Sírias refugiadas estão a crescer sem ir à escola.
Não queremos saber nem das crianças Sírias nem de nenhumas outras, a menos que nos atirem com a fotografia de um bebé afogado, de bruços numa praia Grega.
Porque alguém haveria de querer saber se as nossas crianças estão a ir à escola ou não?