OS OUTROS, DENTRO DE NÓS

Relacionar a dinâmica da transformação histórica com o sulco profundo e alargado que as aplicações tecnológicas da ciência moderna acarretam é hoje uma constatação redundante, e mesmo trivial. As biotecnologias actuais têm uma certidão de nascimento relativamente recente. Podemos situar a identificação do ADN por Watson e Crick, em 1953, como o ano de viragem que nos vai conduzir até aos actuais temores acerca de futuras (será que não existem já, na sombra?) antropotécnicas, capazes de transformar o próprio software da condição humana. Contudo, o receio de que a humanidade pudesse gerar através da técnica homúnculos, criaturas que depois se voltariam contra o seu criador, é algo que enraíza no subsolo mental mais profundo da cultura europeia, ultrapassando a ponderação racional da viabilidade da produção material dessas criaturas.

O Filho de Frankenstein

O que distingue a nossa contemporaneidade é que mesmo a ficção necessita da especiaria da tecnociência para se libertar, no exercício especulativo, da sua espécie de voo acordado. É precisamente isso – a combinação entre alquimia, magnetismo e outros primeiros passos rumo à biologia – aquilo que encontramos na figura do Dr. Victor Frankenstein, o desmesurado aprendiz de cientista que partilha a centralidade da primeira novela de ficção científica com a sua criatura sem nome, dada à luz pela inspirada imaginação de uma autora de apenas 18 anos de idade, Mary Shelley (1797-1851). A obra anónima, que seria publicada em 1818 com o título: “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno”, despontou no recolhimento do lago Genebra, no Verão de 1816. A autora, filha de Mary Wollestonecraft (1759-1797), a pioneira de todos os feminismos, morta escassos dias após dar à luz a futura escritora, e de William Godwin (1756-1836), um filósofo quase libertário. Mary Shelley, casada com o poeta Percy Shelley (1792-1822), aceitara o convite de Lord Byron (1788-1824) para o que prometia ser um Verão tranquilo. O Verão suíço revelar-se-ia uma desilusão. Aliás, seria vivido como uma inesperada tragédia em todo o hemisfério Norte. Frio, chuva, neve. Os historiadores chamariam a 1816 “o ano sem Verão”. Mary Shelley foi forçada a trocar agradáveis passeios junto ao lago por dias inteiros num ambiente doméstico propício à escrita. Mary Shelley desconhecia as razões que levaram ao desaparecimento do Inverno de 1816. No ano anterior, em Tambora, na Indonésia, ocorrera a mais poderosa explosão vulcânica desde que há registos históricos. Milhões de toneladas de cinza e poeiras ficaram durante muitos meses em suspensão na tropopausa. A temperatura mundial média desceu bruscamente 1ºC. As colheitas de trigo do Canadá ficaram quase reduzidas a zero. A descida da produção agrícola atingiria muitos outros países, com motins causados pela fome na Grã-Bretanha, na França e a própria Confederação Helvética ficou mergulhada num estado de emergência alimentar. Mary Shelley testemunhara, sem o saber, os efeitos de uma transformação climática abrupta que só pode ocorrer, tanto quanto sabemos hoje, por três razões: a) grandes erupções vulcânicas; b) choque de meteoritos de grandes dimensões com a superfície terrestre; c) em caso de deflagração de armas nucleares num cenário de guerra generalizada.

A Nova Fronteira

O que Mary Shelley também desconhecia era a importância simbólica que a sua novela viria a conquistar. O drama do Dr. Frankenstein, e da sua horrenda, solitária e monstruosa criação, capturaria o destino fáustico profundo da nossa civilização. A jovem autora projectou na dilaceração culpada de Frankenstein e na revoltada e sofrida busca pelo reconhecimento do seu inominável filho, o conflito entre o princípio da dominação e o silenciado princípio da fragilidade que caracterizam a angústia da humanidade contemporânea. A vertigem de tudo conhecer para tudo dominar em proveito próprio – que escandalizou parte da mentalidade romântica na sua experiência da Revolução Industrial – atingia um paradoxal cume no momento que a nossa sede de domínio, corporizada na personagem de Frankenstein, “produzia” um outro corpo, alheio mas também próprio, que na sua compósita fealdade, desnudava e acentuava a nossa própria fragilidade, como seres que mais do que a manipulação das coisas carecem permanentemente do reconhecimento dos outros.

O princípio da dominação acabaria por prevalecer, apesar do estremecimento da fragilidade resgatada pelo génio da jovem escritora Com efeito, depois de quatro séculos a revolver o mundo físico, a exterminar espécies, a devastar florestas, a semear desertos, a desentranhar minerais, a poluir rios e oceanos, a humanidade parecia condenada – esse foi o insight profético que Mary Shelley teve mais de 100 anos antes do romance Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley (1894-1963) – a procurar esgravatar dentro de si própria para saciar a sua sede insaciável de domínio. A nova fronteira tecnocientífica levaria mais tarde ou mais cedo, à aventura de criar uma nova humanidade. Não um novo idealde humanidade, mas um novo ser humano alternativo, de carne e osso (na altura a possibilidade de outros materiais mistos, como o dos ciborgues não eram ainda sequer suspeitados).Para trás ficaram, irremediavelmente, os tempos da eugenia pueril, da ginástica e dos banhos frios, ou as crenças na conversão ética da humanidade. No mercado do futuro pós-humano que Mary Shelley pressentiu com a clarividência do seu imaginário, em vez da virtude ética visada pelo imperativo categórico, almejamos ficar mais inteligentes e potentes através de próteses e subtis manipulações genéticas. O princípio da dominação, turbinado pela simbiose entre tecnociência e mercado, parece obstinado em confirmar que a longa solidão do filho de Frankenstein parece ter os dias contados. Resta saber que chão restará para acolher essas novas criaturas.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 15 de Dezembro de 2021, página 33.

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