OS DONOS DISTO TUDO

Em Junho próximo, na cidade sueca de Kiruna, um balão elevar-se-á até à altitude estratosférica de 20Km. Será a primeira etapa de um programa de geoengenharia da Universidade de Harvard, financiado pelo bilionário Bill Gates. O projecto é designado pelo acrónimo SCoPEx, que pode ser traduzido para português como “experiência de perturbação estratosférica controlada”. Em linhas gerais, o que se pretende é disseminar partículas não-tóxicas de carbonato de cálcio (CaCO3) para avaliar a sua capacidade de diminuir a radiação solar absorvida pela atmosfera, tentando desse modo indirecto contrariar o processo de aquecimento global.

Este acontecimento, aparentemente menor, está contudo carregado de um inquietante significado. Os motivos para preocupação dividem-se em razões tecnocientíficas e jurídico-políticas. No plano científico, a investigação teórica sobre a mudança antrópica deliberada das condições naturais da Terra para fins de “controlo climático” baseia-se, essencialmente, em analogias com eventos naturais de vulcanismo. Em 1815, a abrupta entrada em acção do vulcão indonésio Tambora, e em 1991 a erupção do vulcão filipino Pinatubo causaram sensíveis reduções da temperatura média do planeta no ano seguinte. Uma grande parte do material vulcânico rompe a tropopausa (10 -15 Km) e estabiliza na estratosfera, criando uma espécie de espelho reflector da radiação solar, cujo resultado é o inverso do efeito de estufa, arrefecendo a superfície planetária. A iniciativa de replicar artificialmente, à escala global, esse efeito de arrefecimento causado pelo vulcanismo constitui de facto um gesto de aventureirismo arrogante, que choca tanto com a nossa profunda ignorância da complexidade das consequências, como com o nosso conhecimento já adquirido. Na verdade, sabemos que a erupção do Tambora foi responsável pelo facto de na Europa e América do Norte o ano de 1816 ter sido gélido, com colheitas destruídas, fome e agitação social. Mesmo que fosse construída uma indústria mundial para “gestão da radiação solar” (SRM, na sigla inglesa), os seus efeitos práticos negativos e disseminados de modo incerto pelo planeta seriam muito superiores aos eventuais efeitos na redução do efeito de estufa.

Contudo, é no plano político e jurídico que a geoengenharia se revela mais perigosa. A coligação que se está a formar para promover este novo mercado de gestão lucrativa de catástrofes, envolve algumas das empresas historicamente mais responsáveis pela emergência climática em que estamos mergulhados. Entre elas conta-se a ExxoMobil, que durante décadas financiou o negacionismo climático e agora quer esconder e neutralizar o problema político da mitigação das emissões de gases de estufa num negócio tecnológico. Aliás, as portas giratórias entre o Big Money e a política estão permanentemente abertas, como foi o caso de Rex Tillerson, deslizando da ExxonMobil para a Secretaria de Estado de Trump. As metas do Acordo de Paris continuam a marcar passo. Os governos estão paralisados pela pandemia, pelos interesses instalados, e por um direito internacional público analfabeto, que desconhece os conceitos básicos das ciências do Sistema-Terra, e permite que os Bens Comuns Globais, como a atmosfera, sejam uma terra-de-ninguém jurídica. Neste quadro de impotência e cumplicidade políticas, a aceleração para um beco civilizacional sem saída aparenta ser a próxima e promissora fronteira nos negócios com elevado retorno.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de sábado, 13 de Fevereiro de 2021, p. 10.

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Paulo Rodrigues

Bill Gates, o oráculo das previsões erradas, continua a ter campo livre para as palermices a que nos habituou, só possíveis devido ao dinheiro em excesso, que tudo compra.
É pouco provável que as quantidades de CaCO3 espalhadas pelo balão tenham qualquer efeito na atmosfera.
O homenzinho ignora a sua escala e a sua mortalidade e é incapaz de perceber as diferenças entre um vulcão e um balão.
No entanto, vamos ter mais umas horas de documentários e notícias nas TVs, a louvar a iniciativa.
Está a acontecer uma espécie de corrida à palermice endinheirada, com dois concorrentes de topo: o gates da microsoft e o musk da tesla.