A TERCEIRA CULTURA

Apesar de a ideia de um governo de “emergência nacional” ser compreensível, em face do fracasso superlativo do actual governo perante a pandemia, a verdade é que os seus pressupostos não prometem um remédio melhor do que a doença que pretende remediar. Pedir ao presidente a iniciativa e patrocínio de uma tal proposta pode significar duas coisas, nenhuma delas recomendáveis. A primeira é ignorância. Não se pode pedir a Marcelo que vá contra uma Constituição que em 1982 viu, os poderes presidenciais serem profundamente revistos. Nem se pode exigir a Marcelo presidente, que vá contra o Marcelo constitucionalista, favorável a essa redução das competências do cargo de que agora é titular. A outra hipótese justificativa desta mudança emergencial do governo ainda me parece pior. Evoca o sinistro triunfo da doutrina do decisionismo de Carl Schmitt (1888-1985), cujo pensamento foi a chave para perceber como foi possível Hitler fundar – na sombra do “estado de excepção” – a sua ditadura de extermínio sem abolir a Constituição de Weimar.

O mais provável é o governo demitir-se, depois de terminada a nossa obrigatória e infeliz presidência europeia, para tentar ganhar de novo as eleições, tendo em vista o também calamitoso estado da oposição. Quando um regime, em vez de se reformar para seguir em frente, o que prefere é cavar uma trincheira defensiva, isso significa que está próximo do fim. A III República está a aproximar-se do ano 1926, da I República, ou do ano 1974, da II República. Talvez o presidente Marcelo, até pelo seu raro conhecimento não só do direito, mas da cultura política portuguesa possa ajudar a que à beira do abismo os donos do “sistema” não se empurrem uns aos outros para a frente. Marcelo tem o dever de colocar ordem na gestão da pandemia, acabando com as insólitas opiniões científicas que o chefe do governo, às vezes, não se coíbe de emitir. As reuniões do Infarmed já estão esgotadas. Precisamos, como Carlos Fiolhais avisadamente escreveu no Público (04 02 2021), de uma autoridade científica, independente e multidisciplinar, que comunica ao governo pareceres, obtidos depois de um debate entre pares, com liberdade e reserva. Depois o governo decidirá como lhe compete, mas sem invocar a ciência conforme o seu capricho e conveniência. Outra tarefa urgente consiste em proteger o país contra o risco de pilhagem dos nossos recursos naturais, que a conta pesada da pandemia vai tornar tentadora para os intermediários em posições de mando. Nem um hectare do solo agrícola e de áreas protegidas deve ser sacrificado para minas de lítio, agricultura intensiva, aeroportos inúteis, ou florestação intensiva de monoculturas.

Mas, talvez, até estes exercícios que se pedem ao recém-eleito presidente sejam excessivos para os limites da cultura política da III República. A I República foi dominada pela cultura da violência e da crispação. O resultado foi um estado de guerra civil de baixa intensidade que se arrastou 16 anos. A II República, foi dominada pelo reforço da autoridade pessoal do presidente do executivo, através não apenas do reforço da capacidade repressiva do Estado, mas também pela transformação da apatia cívica numa virtude patriótica. A incapacidade de enfrentar o desafio colonial sem ser pela guerra, ditou o seu desfecho. A III República, teve sucesso no combate tanto à violência das facções como à violência do Estado sobre os cidadãos. Contudo foi sempre dominada por um primado do princípio do prazer sobre o da realidade. O modo como entrámos na Comunidade Europeia, numa euforia incondicional, como uma velha nação que se pretende reformar na abundância, é disso a confirmação caricatural que nem a pandemia abalou (depois da primeira vaga só se falou da “bazuca” europeia). O problema é que o mundo está a entrar no grande Outono da emergência ambiental e climática. Num tempo onde só sobrevive quem está pronto a aceitar e a viver dentro dos ditames do princípio da realidade. Governar nestas condições não parece gerar muitas vocações, e ainda menos entusiasmos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 10 de Fevereiro de 2021, p. 29.

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Paulo Rodrigues

O “governo de salvação nacional” será o deja-vú de 2011.
E, tal com 2011, traz uma “máscara” benévola (a “SALVAÇÃO”) para disfarçar o seus intentos neoliberais de PREDAÇÃO.
Não nos podemos esquecer que o “trickle down economics” continua a fazer parte dos programas tanto dos velhos, como dos novos partidos de direita portuguesa, incluindo a imbecil terceira via do PS.
E o “trickle down” são as migalhas que caem da mesa do burguês, que os “cães” competem para apanhar.
Os Italianos já estão a experimentar o regresso a 2011, com um governo de “salvação/predação” nacional, ao melhor estilo bolsonaro/guedes, uma fina mistura de ignorância e arrogância, regida por tecnocratas cuja graça se transformará em desgraça, se se desviarem um milímetro da cartilha neoliberal.
Diz-se que os tecnocratas não conhecem a história, mas isso não é verdade.
Todos eles sabem o que aconteceu aos técnicos americanos, nos anos do mccarthismo, precisamente aqueles que não mudaram do paradigma institucional do new deal para o paradigma do mercado livre – o desemprego para muitos e até a cadeia para alguns; só se safaram os que mudaram de “religião”.