Em maio de 1999 escrevi uma crónica de Ecologia por ocasião da ultrapassagem da barreira demográfica dos seis mil milhões. Em janeiro de 2011, repeti o exercício quando se passou o limitar dos 7 mil milhões. Algures neste mês de novembro de 2022, saltámos a cancela dos oito mil milhões. Não me recordo de ter lido ou visto neste acontecimento nenhum sobressalto de reflexão. Depois dos alertas contidos no livro The Population Bomb (1968), da autoria dos demógrafos Paul R Ehrlich e Anne Ehrlich, passámos ao conformismo e à passividade. A humanidade, perante as grandes ameaças que a sua ação irrefletida vai gerando parece ter aprendido a arte de cultivar uma mortífera e bovina indiferença. É claro que a explicação “oficial” é sempre a mesma: a confiança inabalável numa resposta tecnológica inovadora que liberte a humanidade de quaisquer limites naturais, seja no crescimento exponencial da economia, apesar dos limites em ferida aberta do Planeta, seja na multiplicação de seres humanos, esquecendo-se convenientemente que a fome, a doença e a guerra, alguns dos grosseiros “controlos positivos” (positive checks) identificados por Thomas R. Malthus, continuam a ser forças reguladoras da demografia, mesmo na idade da inteligência artificial e das fantasias pós-humanas.
Devemos a Thomas Malthus, na sua obra An Essay on the Principle of the Population (1798), o primeiro estudo sistemático sobre os limites colocados ao crescimento demográfico. Malthus voltaria ao assunto em 1830, com a sua A Summary View of the Principle of Population, no mesmo ano em que um parlamentar, Thomas Sadler, com algum atrevimento intelectual se atreveria a publicar uma obra em vários volumes – The Law of Population – contendo um ataque central ao alegado “pessimismo” de Malthus. Nesse texto breve, Malthus recordava a sua tese principal, que mergulhava a fundo no que poderemos hoje designar como os limites naturais e ecológicos que qualquer população, neste caso a população humana, enfrenta na relação com o seu nicho ecológico, de onde retira o sustento. Escrevia Malthus: “a população, quando não controlada, aumenta numa progressão geométrica de tal modo que duplica a cada vinte e cinco anos”. Importa compreender que o essencial na posição de Malthus não é o esforço de matematização, que pode ser temporariamente contrariado pela tecnologia, mas sim o enraizamento da demografia na capacidade de carga dos ecossistemas (mesmo antes da existência deste conceito). Por outro lado, Malthus advoga o primado dos “controlos preventivos” (preventive checks) da população, que passam por decisões voluntárias de diminuição do número de nascimentos, no que poderemos considerar uma antecipação das políticas de natalidade.
Gostaria, igualmente, de chamar a atenção para um outro aspeto essencial. A questão do pessimismo ou do otimismo, o mesmo é dizer, a negligência do tema demográfico em autores como Sadler ou até Marx, em nome da confiança na tecnologia e no futuro radioso da humanidade, só começa a dominar já bem dentro do século XIX. O essencial não é o otimismo ou o pessimismo, mas sim a aceitação, ou não, da relevância do nosso enraizamento numa natureza com limites, com alguma flexibilidade, mas também com pontos de rutura que não podem ser transpostos, sem penalidades dolorosas para a espécie humana. Noutras crónicas temos chamado a atenção para o facto de a maioria dos economistas clássicos, como por exemplo John Stuart Mill, advogarem a necessidade de limitar o crescimento, o que ele designava como o atingir de um “estado estacionário”. O mesmo se passa com a questão demográfica. Por volta de 1793, inícios de 1794, enquanto se encontrava refugiado em Paris na casa de uma amiga, tentando escapar da perseguição que lhe era movida pelos jacobinos, o Marquês de Condorcet, um dos génios humanos mais confiantes na humanidade e no seu futuro, escrevia na sua obra póstuma (elaborada sem livros nem fichas de leitura) sobre o que poderia acontecer no momento em que a população humana atingisse o ponto limite da capacidade de carga do planeta: “Mas, supondo que este termo deveria ocorrer, nada assustador resultaria daí, quer para a felicidade da espécie humana, quer para a sua perfetibilidade indefinida; se supusermos que antes desse tempo o progresso da razão tenha andado de mãos dadas com o das ciências e das artes, que os ridículos preconceitos da superstição tenham deixado de espalhar sobre a moralidade uma austeridade que a corrompe e degrada em vez de a purificar e elevar, os homens saberão então que, se tiverem obrigações para com os seres que ainda não existem, elas não consistem em dar-lhes existência, mas felicidade; o seu objeto é o bem-estar geral da espécie humana ou da sociedade em que vivem, da família a que estão ligados, e não a ideia infantil de sobrecarregar a terra com seres inúteis e infelizes. Poderia, portanto, haver um limite à massa possível de subsistências e, consequentemente, à maior população possível, sem esta destruição prematura, tão contrária à natureza e à prosperidade social de uma parte dos seres que receberam vida.” (Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Paris, Flammarion, 1988, p. 282).
Foi preciso chegar ao século XXI, quando o Planeta começa a entrar em sucessivos pontos de fratura, para olhar de lado o problema do crescimento demográfico nas suas diversas vertentes. Quando se identifica o desprezo pelos limites objetivos com o otimismo, estamos muito próximos do abismo ontológico e já plenamente mergulhados na indigência intelectual.
Viriato Soromenho-Marques