O acolhimento do diplomata Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional é um acontecimento cuja importância não pode ser reduzida a uma justa, mesmo que tardia, reparação da República para com um seu funcionário longamente ostracizado. Com efeito, o Estado português há muitas décadas beneficia do prestígio que a heróica desobediência do nosso cônsul em Bordéus, quando em Junho de 1940, a escassos dias da capitulação da França perante a Alemanha hitleriana, em colisão directa com as ordens de Lisboa, decidiu emitir inúmeros vistos, em ritmo acelerado, que salvaram a vida a milhares de refugiados, sobretudo mas não exclusivamente judeus. Salazar poderia depois da guerra terminada, com um gesto que nem sequer feriria o culto do moderno ídolo da “razão de Estado”, ter retirado o cônsul da situação de indigência material em que a sua expulsão da carreira pública o colocou. Teria sido um gesto, que até beneficiaria o regime, mas pelos vistos iria causar uma brecha narcísica insuportável para o então Presidente do Conselho. Foi apenas com Mário Soares, em 1987, que o Leviathan luso começou a emendar a mão.
Na verdade, a coragem de Aristides de Sousa Mendes pertence à classe mais incómoda, por ser, potencialmente, a mais universal. Sófocles mostrou-nos isso na tragédia Antígona, há quase dois milénios e meio, ao colocar o heroísmo moral – pois é disso que se trata em Aristides – numa frágil figura feminina (o que não era coisa pouca na patriarcal Grécia Antiga). Antígona arriscou perder a vida para poder sepultar o seu irmão Poliníces, cujo cadáver, Creonte – seu tio e rei de Tebas – queria deixar ser devorado pelos animais selvagens. A natureza do heroísmo ético incomoda-nos porque, estando ao alcance de todos, acaba por ter escassos praticantes. Até pela sua relativa raridade, a coragem ética exibe a nossa fragilidade moral, cuja raiz se encontra, como bem identificou Hannah Arendt, num conformismo que atesta, mais do que cobardia, uma incapacidade de pensar e assumir responsabilidade pelas consequências dos seus actos, como ficou tristemente consagrado na estafada justificação dos criminosos de Nuremberga em 1945: “Eu apenas obedeci a ordens” (Ich habe doch nur Befehle befolgt).
Com efeito, a rebeldia de Aristides de Sousa Mendes assume um carácter ético por identificar na obediência a uma lei positiva, uma violação de um imperativo não escrito, mas de valor inquestionavelmente superior. O conflito moral coloca duas cadeias de comando em rota de colisão. Por um lado, a vontade manifesta dos poderes estabelecidos, cujo cumprimento oferece a recompensa da segurança e a garantia de ser acolhido numa grande organização, seja ela o Estado ou a empresa. Do outro lado, a voz da consciência, que historicamente se tem tornado cada mais inaudível, cujo comando dispensa a mediação de hierarquias burocráticas, traduzindo-se quase invariavelmente o seu atendimento em risco e sofrimento para aqueles que lhe obedecem. A homenagem a Aristides é simultaneamente uma advertência, a cada um de nós, para os imensos desafios éticos contidos nas tribulações do mundo contemporâneo. A “banalidade do mal”, proposta por Arendt, descreve com rigor essa indiferença danosa, daqueles, que sob o pretexto da submissão hierárquica, mais do que perseguir o mal, simplesmente deixaram de crer no bem, recusando-se a assumir responsabilidade pelo mundo, pelos outros, e pela higiene das suas consciências.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 22 de Outubro de 2021