O TERRAMOTO QUE AINDA NÃO ACABOU

Em 1955, no bicentenário do grande terramoto de Lisboa de 1 de novembro 1755, o município da capital publicou uma antologia contendo os 3 textos de Kant (1724-1804), traduzidos por Luís Silveira, sobre essa catástrofe. Os opúsculos de Kant – que procuravam explicar o grande sismo no quadro de leis naturais próprias autónomas, indiferentes tanto aos desígnios humanos como aos caprichos de uma qualquer divindade castigadora – são apenas uma parte dos muitos textos de grandes autores, como Voltaire e Rousseau, que foram profundamente afetados pela tragédia da mártir capital portuguesa, então uma das mais importantes cidades mundiais. Ainda hoje abundam os ensaios que voltam à tripla catástrofe lisboeta (sismo, tsunami e incêndio) na perspetiva de avaliar o seu impacto filosófico e cultural na mudança da cosmovisão ocidental. O que estava (e está) em causa consiste em compreender como o debate sobre o terramoto de 1755 provocou o corte abrupto com uma visão caracterizada pela confiança na bondade do mundo e no otimismo relativamente ao nosso lugar nele.

Os pensadores que mais influenciaram a primeira metade do século XVIII foram o alemão Leibniz, nos seus Ensaios de Teodiceia (1710), e o inglês Pope, no seu poema metafísico, Ensaio sobre o Homem (1732-4). Leibniz ousou penetrar na mente divina, tentando decifrar o seu processo de escolha racional na criação do mundo. Concluiu que Deus era obrigado a “consentir” algum mal, como condição para que, na sua totalidade, este fosse o melhor dos mundos possíveis. Numa linha, menos especulativa, mas convergente na substância, Pope vai defender que o mal é um erro da perspetiva humana. Nós não conseguimos vislumbrar “a grande cadeia do Ser”, na qual, tudo o que existe, mesmo o sofrimento, está no seu lugar necessário e adequado.

Foi precisamente contra esta lógica de alegre aceitação e submissão a um mundo de harmonia preestabelecida, que as interpretações da magna tragédia de Lisboa, por parte da inteligência europeia, se ergueram. Como aceitar que 30 000 lisboetas tenham perecido, enquanto em Paris e Londres a vida continuava na sua distraída normalidade, perguntava Voltaire. Como responsabilizar Deus pelos males do terramoto, quando Lisboa em vez de construir em extensão, amontoava os seus habitantes em 20 000 prédios de seis e até sete andares, admoestava Rousseau. Kant, partiu da tragédia absurda de Lisboa para a sua grande aventura intelectual de refundar a filosofia através de uma crítica das potencialidades e limites da finita racionalidade humana. Importava não cometer o erro de confundir a vastidão do que podemos pensar com a exiguidade do que podemos conhecer. Depois do terramoto, Deus foi ilibado do mal. A teodiceia eclipsou-se. A questão do mal passou a ser inteiramente da responsabilidade humana. O mal, transitou da especulação metafísica para o terreno de um bem maior a ser construído no tumultuoso campo da história. 267 anos depois desse dia crucial, onde nos encontramos nós? O saldo deste mundo, deixado sem reservas sob gestão e império humanos, só nos pode envergonhar: guerras totais, genocídios, holocaustos…e para cúmulo: o ataque sem tréguas contra a ecologia vital da nossa casa planetária e do nosso futuro comum. Não surpreende que Martin Heidegger, numa entrevista à revista Der Spiegel, publicada a seu pedido só após a sua morte em 1976, tenha dito: “agora, só um deus nos poderá salvar”.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 5 de novembro de 2022, p. 12.

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