Ainda nem sequer estamos no fim do princípio, para glosar a declaração de Churchill após a vitória sobre Rommel em El Alamein (1942). A ignorância sobrepuja sem medida o que julgamos saber. Por isso usamos analogias pouco rigorosas. Estamos em guerra contra o Covid-19? A intenção não é certamente má, mas escamoteia o que torna esta crise diferente de todas as outras. Pela primeira vez na era industrial o músculo económico do mercado mundial está fechado, com mais de um milhar de milhões de pessoas em diferentes tipos de quarentena. Nas guerras mundiais, o comércio mundial desacelerou, mas a produção, pelo contrário aumentou exponencialmente nas diferentes áreas da indústria bélica e o pleno emprego foi atingido por excesso. Contudo, a analogia faz sentido no que toca à necessidade de mobilização e convergência corajosa de esforços. Importa saber, contudo, contra quem estamos a combater. Quem é o inimigo?
A resposta passa por pensarmos com rigor o que já aprendemos sobre a identidade desta crise. Esta pandemia não é comparável como as outras. Nem com a Peste bubónica do século XIV, nem com a “gripe espanhola” de 1918. Esta pandemia veio com alertas que foram desprezados. Através do Youtube, é possível aceder à conferência de 2015, onde Bill Gates explicou, profeticamente, como o mundo não estaria preparado para uma pandemia provocada por um vírus de incubação lenta. Neste século já tivemos a experiência de duas epidemias com vírus da mesma família (coronavírus): a SARS (2003), com origem também na China, e a MERS (2012), com epicentro no Médio Oriente. Contudo, o seu perfil de disseminação levou a um número baixíssimo de vítimas, respectivamente, 800 e 858. Menos do que os mortos do Covid-19, ontem, na Europa. As responsabilidades de Pequim são inegáveis. Tanto na ocultação do SARS-COV-2, logo no início da propagação em Wuhan, como na manutenção, depois da SARS 2003, dos cruéis mercados de animais selvagens, muitos deles de espécies em extinção, que tudo indica serem o lugar onde ocorre a transmissão do vírus para o homem. Contudo, o problema é mais geral. É planetário. O vírus da gripe suína H1N1 (2009-2010), também é zoonótico (que se comunica dos animais para os homens). Foi transmitido do porco e de aves, tendo por fulcro o México. A intrusão brutal e destruidora da nossa espécie sobre a biodiversidade, e uma dieta excessivamente carnívora, estão a causar um efeito “boomerang”. Por isso 75% das novas doenças têm origem nessa transmissão zoonótica.
Se quisermos vencer o Covid-19 teremos de ser capazes de não agir como ele. A crise global do ambiente e clima está a transformar a humanidade numa espécie kamizake contra o nosso hospedeiro, esse misterioso e único ventre materno da Terra que nos deu e sustém a vida. Se vencer a crise do Covid-19 não significar derrotar o pior de nós próprios, reconstruindo a nossa habitação como membros da Comunidade Planetária – através de uma profunda reforma da ética, da política e da economia – então estaremos apenas a adiar o colapso definitivo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 28 de Março de 2020, p. 29