Um dos sinais da entropia crescente do mundo contemporâneo é a multiplicação das vozes que se erguem para propor e vender soluções para problemas que, manifestamente, não compreendem. A recente COP 26, em Glasgow, foi uma verdadeira montra dessa poderosa aliança entre indigência intelectual e vazio moral que governa a humanidade contemporânea. Por Glasgow desfilaram projectos aterradores que prometem — sob a pretensão de salvar o ambiente, o clima e a humanidade – encher a Terra com centenas de novas centrais nucleares, esburacar a crusta com milhares de novas minas para alimentar a indústria das baterias para os veículos eléctricos, lançar para o espaço dispositivos que permitem aumentar o efeito de albedo para diminuir o ritmo acelerado das alterações climáticas. Nem por um momento, alguma figura ou instituição de relevo ousou interrogar o dogma do crescimento, que transforma a economia numa arma de destruição maciça. De mudar o estilo de vida. De baixar a pressão sobre a biodiversidade. Aqueles que levaram o mundo à beira de um colapso a escassas décadas — com sinais já hoje evidentes – querem agora salvar a humanidade usando o mesmo método, colorido agora de retórica “verde”. Como chegámos até aqui? Quem deu aos bilionários e seus agentes nas chancelarias o direito para serem os despóticos donos da Terra, incluindo nesse domínio implacável o futuro dos mais jovens e das gerações que ainda não nasceram?
A raiz profunda dessa privatização predatória da Terra encontra-se no longo debate sobre os limites da liberdade humana, travado no âmbito de uma gigantesca mudança espiritual europeia, intensificada no século XVIII, culminando no século XIX em acontecimentos tão profundos como a “morte de Deus” e o “niilismo” (muitas das crónicas do padre Anselmo Borges no DN glosam esta constelação temática). Em 1881, no mesmo ano da morte de Dostoievski (1821-1881). Nietzsche (1844-1900), futuro admirador do escritor russo, escreveu esta breve nota, que só seria publicada postumamente: “Se nós não fizermos da morte de Deus uma grandiosa renúncia e uma perpétua vitória sobre nós próprios, então teremos de suportar a sua perda.” Nessa altura, depois de Schopenhauer, Feuerbach, de Heinrich Heine, de Marx e tantos outros, a radicalização do processo de “secularização” em “morte de Deus” já não era motivo de disputa, mas sim um facto duro e bruto da era da Revolução Industrial em alastramento. Os sonetos de Antero de Quental, ou os angustiados personagens de Dostoievski (como Ivan, dos Irmãos Karamazov), debatem-se com os limites dessa liberdade. Será tudo possível num mundo sem Deus? O texto de Nietzsche é um dos mais lúcidos sobre essa magna questão. Na minha leitura, essas duas linhas formulam a condição não preenchida, que explica a actual e desesperada encruzilhada da odisseia humana. A partir do momento em que retiramos à natureza e à Terra inteira o selo da criação e protecção divinas, dois caminhos se abririam para a humanidade. O primeiro, seria o de assumir com estremecimento, reverência, contenção e modéstia a enorme responsabilidade que o novo imenso poder humano de governar o mundo acarretaria. O segundo caminho, aquele que sendo mais fácil e vulgar acabou por prevalecer, foi o de se apoderar do mundo como um exército vitorioso, sedento de saque e vingança, entrando numa cidade conquistada. Talvez seja tarde para o resto, mas depende só de cada um de nós não meter a cabeça na areia.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 11 de Dezembro de 2021, página 11