O QUE FALTOU DIZER

Destaco dois aspetos centrais no discurso de Natal do PM, que não mereceram reparo de nenhuma das oposições. O primeiro foi o modo redutor como o PM referiu o combate às “alterações climáticas”. Fê-lo, mas num registo que apouca a gravidade do que está em causa. Para o PM, “alterações climáticas” significa “oportunidade económica”, mobilidade elétrica e eletricidade a partir de fontes renováveis. O PM não integra o disruptivo e acelerado passo da degradação ambiental, que não se reduz apenas às alterações climáticas. O que está em causa é o equilíbrio entre medidas de mitigação e medidas de adaptação, no âmbito da atual estratégia económica. Infelizmente, essa estratégia imagina o futuro como mera repetição das décadas passadas, esquecendo a crescente vulnerabilidade ecológica do país. Por isso temos na agenda o novo aeroporto de Lisboa, a continuação da agricultura intensiva, catalisadora de desertificação, uma indústria turística que recusa repensar o seu modelo apesar da degradação acelerada das paisagens e dos recursos hídricos que a suportam. Ou ainda, uma “ambiciosa” aposta na mineração do lítio, sacrificando solos e biodiversidade que dentro de escassas décadas nos farão falta para sobreviver.

Mas o verdadeiro ato falhado freudiano do PM é a ausência de referência à acelerada desordem da situação internacional. O PM não mencionou uma única vez, a palavra “guerra”, numa altura em que conflitos, com potencial de escalada e alargamento, se expandiram da Ucrânia para a Palestina. São duas guerras em que estão envolvidos os blocos a que o país pertence, OTAN e UE, e os seus aliados principais, EUA, Reino Unido e Alemanha. Em ambas, o Estado português, e não apenas o governo, falhou na proteção do interesse nacional e da segurança da vida e fazenda dos portugueses. Na Ucrânia, um apoio português estritamente humanitário ao país invadido, não violaria nenhuma obrigação internacional. Teria ajudado a demarcar-nos da insensatez de Washington, que, com cumplicidade ou indiferença europeias, ignorou décadas de reservas russas contra o alargamento da OTAN ao país onde está a base da sua esquadra do Mar Negro. Não teríamos feito parte dos que estimularam o prolongar de uma guerra que a Ucrânia não poderia vencer, e que, para além dos lucros obscenos da indústria armamentista, continua a causar o luto em centenas de milhares de famílias ucranianas e russas. Poupar-nos-ia, até, a vergonha de estar ao lado do coro daqueles que rasgaram as vestes contra Putin, mas agora emudecem perante o terror à solta do governo de Netanyahu em Gaza, como se a hedionda fúria terrorista do Hamas contra civis israelitas em 7 de outubro justificasse uma vingança bíblica irrestrita, uma espécie de repetição do massacre dos Cananeus (Deuterónimo 20: 16-18). É patético ver a Casa Branca transformada num dócil gigante sem alma, com o fito de garantir os donativos do lobby judaico para a improvável reeleição de Biden. O PM guardou silêncio sobre uma UE que em 2024 viverá, talvez, a sua pior crise existencial, e sobre os EUA, que dentro de um ano podem estar nas vésperas da guerra civil ou da ditadura presidencial. Há 50 anos, Portugal era o derradeiro D. Quixote colonial, isolado na luta pela sua anacrónica e insustentável continuidade imperial. Passámos de um despotismo trágico e mítico para uma democracia que, através duma pequenez autocomprazida, recalca a abdicação voluntária da responsabilidade maior pelo destino coletivo de todos nós.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias na edição de 30 de dezembro de 2023, página 13.

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