O LOBO PELAS ORELHAS

É inquietante a semelhança entre os argumentos que hoje se escutam para justificar a letargia no combate às alterações climáticas e a teia de justificações que foram usadas para prolongar a escravatura, mesmo depois das revoluções liberais do final de Setecentos. Os EUA são um exemplo disso por excelência, e Thomas Jefferson um caso particularmente revelador. Embora filho de uma antiga família de plantadores esclavagistas da Virginia, Jefferson, talvez o maior representante das Luzes norte-americanas, não tinha um instrumentário conceptual para racionalizar a “instituição peculiar”, designação oblíqua usada na altura para ocultar essa abominação moral. Não admira que, contra o protesto dos seus colegas sulistas no Congresso Continental, Jefferson tenha condenado a imoralidade da escravatura na sua proposta de Declaração de Independência. Ela seria aprovada, a 4 de Julho de 1776, depois de tal condenação ter sido rasurada para manter a unidade entre o Norte e o Sul…Quase 50 anos depois, o velho Jefferson voltava ao assunto numa carta, dirigida a John Holmes em 22 de Abril de 1820, onde se pode ler: “Mas, tal como as coisas estão, nós temos o lobo pelas orelhas, e nós não podemos nem mantê-lo, nem deixá-lo partir com segurança. A justiça está num dos pratos da balança e a autopreservação no outro.” Por outras palavras: tal como em 1776, Jefferson continuava a acreditar que a escravatura era imoral e contrária à “justiça”, contudo, a abolição da escravatura a acontecer lançaria os Estados sulistas dos EUA numa crise económica que conduziria à sua irrelevância, pondo em causa a sua própria “autopreservação”.

Também hoje, sobretudo depois do fenómeno Greta Thunberg, se ouve algo de muito semelhante, que poderia sintetizar-se nesta formulação: “as alterações climáticas são muito graves, mas temos de ir devagar, se não quisermos lançar o mundo no caos económico”. Todavia, tanto a explicação de Thomas Jefferson como a justificação dos “moderados” climáticos está eivada de falácias e até de mentiras, Entre 1776 e 1861, o Sul esclavagista teve mais do que tempo suficiente para fazer uma transição suave da escravatura para o trabalho livre. Contudo, em vez disso, a escravatura consolidou-se, tendo mesmo incorporado o racismo da biologia nascente, A guerra civil não aconteceu porque Lincoln quisesse abolir a escravatura, mas sim porque os Estados sulistas a queriam impor a toda a federação americana. Desde 1970 que sabemos o essencial para fazer a transição energética, e a situação não tem parado de se agravar. Todas as tentativas sérias foram combatidas, mesmo com mentira e violência, pelos “moderados climáticos”, como a retirada dos painéis solares da Casa Branca de Reagan em 1981 o exibe. O imposto mundial sobre carbono nunca foi aprovado. O Acordo de Paris é uma promessa frágil…Na escravatura e na crise climática temos a marca comum do défice moral das elites. A escravatura foi dissolvida num banho de sangue. O recalcamento, boçal ou hipócrita, da crise climática augura uma tragédia incomensuravelmente maior.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 14 de Dezembro de 2019, página 35.

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