O HORRENDO CAIR DAS MÁSCARAS

No dia 5 de julho de 1866, o estudante Nietzsche escreveu ao seu amigo Wilhelm Pinder, sobre os acontecimentos tumultuosos da recentemente iniciada guerra entre a Prússia e a Áustria: “Pode aprender-se muito com estes tempos. O solo que parecia firme e inabalável, vacila; as máscaras caem dos rostos. As inclinações egoístas mostram sem dissimulação o seu horrendo semblante. Mas, acima de tudo, pode observar-se como é escasso o poder do pensamento”. Nietzsche – então um jovem filólogo apaixonado pela filosofia – surpreendia-se pelo modo como tudo o que parecia familiar e conhecido, estremecia perante o choque das vontades e dos egoísmos dos Estados e seus líderes. Na guerra, quando tudo está em causa, caem as luvas e as palavras macias. A brutalidade do ferro e do fogo toma o centro do palco. Os valores, em vez justificarem o uso das armas, transformam-se, também eles, em armas ao serviço do puro objetivo de impor a vontade de vencer. A verdade crua do exercício de dominação faz vacilar o pensamento. Estamos a atravessar, hoje, mas no mundo inteiro, um período semelhante de vertigem e desvario.

 Nenhum protesto ou apelo a uma lei internacional ou ética universal parece poder travar a crueldade sem nome que está a ser cometida em Gaza contra civis indefesos. A mortandade de crianças, mulheres, jornalistas e funcionários da ONU pelas forças armadas de um Estado democrático ultrapassam tudo o que conhecemos desde o final da II Guerra Mundial. Choca o escândalo de ver descendentes de perseguições milenares transformados em algozes implacáveis. Uma guerra travada num gueto, onde os encurralados, desta vez, são islâmicos. Ninguém interrompe esta matança, porque os EUA precisam duma testa-de-ponte, a qualquer preço, numa região estrategicamente crítica, onde Washington tem acumulado erros. Biden, tão lesto a chamar “assassino” e “ditador” a Putin e Xi, torna-se cúmplice da ignomínia de Netanyahu, escondendo a sua vontade de vingança no direito de defesa de Israel. Na Ucrânia, também os EUA (sempre com a servil UE debaixo do braço), depois de subestimaram grosseiramente a determinação de Moscovo, que há décadas identificara a Ucrânia como a linha vermelha inaceitável para a expansão da OTAN, procuram agora atrasar ao máximo o reconhecimento do fracasso da sua estratégia. Em vez de apoiarem as negociações iniciais de paz, alimentaram uma guerra – com o declarado objetivo de causar baixas a Moscovo – mesmo sabendo que a Rússia não a poderia perder. Na verdade, para além dos danos reputacionais de todos os intervenientes, este conflito já ceifou a vida de centenas de milhares de ucranianos e russos, lançados na fogueira do “horrendo semblante” das “inclinações egoístas”. Um mar de sangue e ruínas, sem culpa nem remorso.

Neste quadro desolador, a iniciativa do SG da ONU, António Guterres, de impor uma reunião especial do Conselho de Segurança para travar a catástrofe de Gaza, é um ato de grandeza moral e coragem política. O recurso ao artigo 99.º da Carta da ONU só foi usado três vezes na história da Organização. Ele vai obrigar os Estados a tomarem posição, tendo a humanidade como testemunha. António Guterres, que ao lado do Papa Francisco é também o único líder mundial que percebe a gravidade da crise ambiental e climática, mostra neste gesto que se não travarmos a desmesura e o impulso de dominação, acabaremos todos por ser devorados pela pulsão de morte que é a sua raiz mais profunda.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias na edição de 9 de dezembro de 2023, página 15.

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