Na passada quarta-feira pude assistir às manobras operacionais de uma formação de aviões Canadair. Ao longo de mais de uma hora, num ritmo surpreendente, pilotos experientes e corajosos efetuaram cerca de 40 investidas contra uma frente de incêndio rural, que descia de Palmela para Setúbal através da encosta de São Paulo. Pouco antes das 20 00h, os aviões cessaram a sua atividade e, de facto, a noite foi tranquila. Certamente que sem essa intervenção, o incêndio teria alargado a sua ação, pelo menos à periferia da malha urbana de Setúbal, com todas as consequências dolorosas que poderíamos antever.
Este sucesso pontual foi e continuará a ser replicado neste Verão, que não promete dar tréguas aos bombeiros, proteção civil e populações diretamente afetadas. Mas este êxito não nos deve distrair do juízo sobre a matricial deficiência da estratégia geral de combate aos incêndios. Cinco anos depois do inferno de junho e outubro de 2017, as escolhas do governo nesta matéria continuam a ser essencialmente de fim-de-linha. Todas as promessas de atacar as raízes genéticas profundas da transformação do espaço rural numa ameaça interna à segurança de pessoas e bens ficaram nos projetos dos especialistas, mas sem meios materiais nem vontade política para se concretizarem. A III República intensificou aquilo que o Estado Novo em fase crepuscular já tinha começado a acolher: a ocupação desordenada por monoculturas com valor de mercado, das áreas rurais abandonadas pelo maciço êxodo do campo para a cidade, e para a emigração. Mas a democracia fez mais do que isso. Abraçando, incondicionalmente, o credo mercantil, Portugal é hoje o país europeu onde o Estado mais se demitiu da presença direta no mundo rural, liquidando velhas instituições de vigilância e salvaguarda das florestas, consolidando também a posição de triste campeão da área ardida no Velho Continente.
Os incêndios rurais são também uma metáfora da diferença entre a dura realidade que nos aguarda e a delirante visão do futuro das elites partidárias e económicas que comandam o país. O “caso” do ministro Pedro Nuno Santos, afinal, foi apenas um erro de comunicação e não de substância. Tudo se inclina para uma solução aeroportuária, tecnicamente imprudente e ambientalmente destrutiva. O ministro difunde a falácia de que os problemas atuais de saturação do aeroporto de Lisboa são de premente falta de capacidade, desprezando a explicação mais universal, sentida em muitos outros aeroportos, da combinação entre um pico conjuntural da procura e a falta de meios humanos decorrentes das reduções de pessoal durante a pandemia. No futuro que nos espera, em que já não poderemos contar com a bondade previsível de um sistema ecológico, que pontapeámos sem margem de retorno, um novo aeroporto será mais uma colossal ruína a celebrar a insensatez. Aliás, em 2022 adquirimos mais uma certeza. A guerra da Ucrânia, e sobretudo a absurda resposta ocidental, alimentaram uma corrida senil aos combustíveis fósseis. A promessa da neutralidade carbónica transformou-se numa cortina de fumo que esconde ou ingenuidade ignorante ou cinismo instrumental. Nos próximos dois anos de tempestade perfeita para onde nos encaminhamos, veremos o que sobreviverá da UE. A brutal desvalorização do euro é o prelúdio de uma convulsão que poderá colocar quase tudo em causa. O nosso território é a nossa última e inquestionável linha defensiva. As políticas públicas tardam em reconhecê-lo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 16 de julho de 2022, página 9.