O ASSALTO À CASA BRANCA

O filme de Adam McKay, Vice, sobre a sinistra figura de Dick Cheney, o poderoso vice-presidente de G. W. Bush, Jr., é um trabalho notável. Essa película provoca no espectador o duplo efeito de purificação moral e alargamento intelectual que caracteriza as obras de arte duradouras. A excelente actuação de Christian Bale – um actor capaz de transformar a dolorosa metamorfose do seu corpo num quase mágico instrumento de representação – permite-nos um momento de reconciliação reflexiva, capaz de vencer a actual e repulsiva fenomenologia dos EUA. O realizador McKay e o actor Bale devolvem-nos o espaço da meditação e das categorias que a miséria moral e o analfabetismo grotesco de Trump permanentemente dificultam. A sátira inteligente e muito bem documentada de Vice é um gesto de libertação racional, recordando-nos as raízes causais do trágico e ameaçador circo em que os EUA se transformaram.

Trump não foi uma anomalia, mas é antes o resultado mais graficamente escandaloso de um longo processo de corrupção, gizado a partir de dentro do mais notável edifício democrático inventado nos últimos dois séculos e meio. A delicada arquitectura, desenhada na Convenção de Filadélfia em 1787, de uma república federal baseada no primado da lei positiva, num sólido patriotismo constitucional, sem registo prévio de um território delimitado, foi capaz de resistir a uma Guerra Civil, a duas guerras mundiais, a uma Grande Depressão, mas agoniza hoje, dolorosamente, sob os efeitos da “revolução conservadora” e neoliberal, que se radicalizou numa aberração nos anos de Bush, Jr. e de Cheney. Entre 2001 e 2009, os EUA viveram fora da lei, quer da do direito internacional, quer da sua própria constituição. Cheney foi o principal inspirador da transformação do 11 de Setembro numa oportunidade para acentuar todas as patologias do sistema político norte-americano. Sem pudor – este sibilino empresário do petróleo e campeão do negacionismo climático que compromete o futuro colectivo – organizou e liderou a maior mentira premeditada do século XXI, a das “armas de destruição maciça” de Saddam Hussein, justificando a sangrenta invasão e destruição do Iraque. Essa agressão, celebrada com a descarada captura dos recursos naturais de um país soberano, abriu também um explosivo desequilíbrio geoestratégico de que ainda estamos a viver os primeiros capítulos. Cheney é também o rosto da reintrodução da tortura como método de interrogatório, bem como da entrega de parte importante das actividades militares dos EUA, em todos os teatros de guerra, a empresas privadas de mercenários. Com Cheney, o poder dos bilionários, que já manda no Congresso, teve acesso directo à Casa Branca. Este filme, duramente crítico dos crimes contra a humanidade de um Cheney que permanece sem castigo, mostra que nem tudo está perdido onde resta a liberdade de expressão. Contudo, o vírus de cupidez niilista e plutocrática que ameaça a democracia americana e lança uma densa sombra sobre a paz mundial, está muito longe de se dar por vencido.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, na edição de 23 de Fevereiro de 2019, página 25.