O ANTROPOCENO É UMA DISTOPIA

No ano 2000 entrou em circulação, tanto na esfera pública como no debate académico, o conceito de Antropoceno para integrar o tempo actual no imenso calendário geológico. A proposta, assinada por dois cientistas de nomeada, P. Crutzen e E. Stoermer, destronaria a designação epocal ainda vigente, Holoceno, que se iniciou com o final da mais recente glaciação, há 11 500 anos. Na verdade, as marcas da acção da humanidade estão hoje registadas no corpo do planeta, da litosfera à atmosfera, da hidrosfera à criosfera, não esquecendo a biosfera. Dentro de dois ou três séculos, se os vindouros ainda tiverem interesse e condições para desenvolverem actividades científicas, ficará claro que a passagem da nossa espécie pelo Planeta, devido ao impacto duradouro que deixará, pode ser comparável aos grandes surtos de vulcanismo ou às colisões de asteroides que marcaram catástrofes e recomeços na história da Terra ao longo de centenas de milhões de anos.

Compreendo as razões para essa proposta. Contudo, parece-me ser demasiado genérica e imprecisa. A humanidade, na sua presente configuração anatómica e intelectual, existe há dezenas de milhares de anos. Contudo, as nossas marcas, transformacionais e estruturais introduzidas no Sistema-Terra, só tiveram início com a Modernidade (há 5 séculos) e em especial depois do início da Revolução Industrial (1750), acentuada com a Grande Aceleração (1950). O que é que mudou na acção antrópica, nestes escassos séculos, e que tem crescido numa vertigem exponencial? No essencial, temos vivido a realização das promessas utópicas. Utopia é o título do livro de 1516, escrito por Thomas More, que fundou este modo moderno de pensar. A utopia (do grego, “u-topos”, «o que não tem lugar») manifesta o anseio por um mundo, desejável, mas, aparentemente, irrealizável. Na Antiguidade já existiam utopias, mesmo sem esse nome. Na República, Platão, fala-nos de uma cidade ideal. Qual a diferença entre a utopia moderna e a antiga? O centro de gravidade, na utopia antiga, era a alteração da relação do homem consigo próprio e com a sociedade, através do aperfeiçoamento ético, educativo e político. Na utopia moderna, pelo contrário, o que se visa é mudar as relações da humanidade com o mundo, de modo a extrair da natureza tudo o que possa melhorar o conforto e a duração da vida humana. O meio para tal não passava pela dureza da disciplina ética, mas antes pela invenção de uma ciência útil à vida, pronta a transformar-se em tecnologia. E assim foi. De More a Descartes, passando por Campanella e Bacon, as utopias modernas foram essenciais para a criação da sociedade tecnocientífica em que hoje vivemos. A aliança entre utopia tecnológica e economia de mercado conduziu à plenitude globalista em que estamos mergulhados até à ponta dos cabelos. Hoje a utopia realizou-se. Transformou-se em mundo. Quando uma utopia se realiza até ao excesso, como é o caso hoje, temos um cenário de distopia. Pela primeira vez, toda a humanidade vive dentro da mesma distopia tecnológica. Por isso, esta época deveria chamar-se Distopiaceno em vez de Antropoceno. O problema é que se a utopia antiga desejava um mundo incompatível com a realidade, a nossa distopia tecnológica construiu uma nova realidade incompatível com o mundo natural, de carne e osso, como as actuais e bicudas crises globais bem o demonstram. Será a nossa civilização um cometa convencido que é um sol? Haverá alguma pergunta mais relevante e urgente do que esta?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 16 de Outubro de 2021

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