No próximo dia 21, a cidade de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, comemora os 486 anos da sua elevação a cidade. Angra é a capital histórica dos Açores e desempenhou um papel estratégico na Carreira das Índia, no auge dos Descobrimentos. Nas cerimónias a realizar nesse dia, inclui-se o lançamento de uma obra fotográfica da autoria de Paulo Henrique da Silva, Serra de Santa Bárbara, com prefácio do nosso cronista Viriato Soromenho-Marques, que aqui se apresenta em pré-publicação. Que Angra, cidade que desde 1983 conta o seu núcleo histórico na lista do Património Mundial da UNESCO, celebre como parte da sua identidade o património natural, só poder ser lido como um profundo sinal de maturidade política e cultural.
A Serra de Santa Bárbara é uma das paisagens naturais da Ilha Terceira que melhor preserva o compromisso que muitas vezes a beleza natural, quando a história dos homens o permite, consegue estabelecer com a história da Terra. Ali encontramos 3km2 de coberto vegetal que nos transportam no tempo longo. Muito embora seja indiscutível que todas as 9 ilhas do arquipélago açoriano – uma das primeiras testas-de-ponte dos Novos Mundos desvendados pelas Descobertas marítimas da Modernidade – surpreendem os visitantes quase sempre pela harmonia acolhedora dos seus territórios, mesmo quando estes já foram longamente metamorfoseados e humanizados pelo trabalho de séculos na árdua luta pela sobrevivência, a verdade é que na Serra de Santa Bárbara cintila de modo particularmente intenso a herança botânica e ecológica, que há muitos milhares de anos era comum também à Península Ibérica e a vastas outras regiões do continente europeu. Permitida por um clima subtropical e húmido, a floresta de folhagem persistente, constituindo um ecossistema que hoje se designa como laurisilva, era constituída por árvores da família das lauráceas, como o loureiro, o til, o vinhático ou o barbuzano. Com as alterações climáticas do Pleistocénico, e em particular com a mais recente glaciação (Würm), as condições propícias para essa floresta despareceram do Velho Continente, resistindo ela, todavia, como relíquia viva, no regaço termicamente protector do Atlântico, na região insular da Macaronésia (arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias).
No território português, como tem sido profusamente estudado por Raimundo Quintal, é a Madeira que conserva a área mais vasta deste ecossistema tão arcaico quanto esplêndido, contudo na açoriana Serra de Santa Bárbara, o caminhante pode experimentar em plenitude essa viagem no tempo da história natural, que é também um convite ao recolhimento e à meditação. É isso que neste livro, como se de um aliciante convite se tratasse, fica exuberantemente manifesto nas inspiradas fotos de Paulo Henrique Silva. Aceitando o convite da partilha do olhar oferecido por este artista, há muito apaixonado pela exaltante descoberta dos labirintos naturais da sua pátria insular, percorremos algumas das mais significativas marcas da flora azorica: o Loureiro-dos-Açores (Laurus azorica) – pequena árvore endémica; o Azevinho-dos-Açores (Ilex azorica) – pequena árvore ou arbusto grande endémico; a Urze-dos-Açores (Erica azorica) – arbusto endémico; e ainda o Cedro-do-mato (Juniperus brevifolia), sendo certo que o melhor e maior povoamento desta pequena árvore endémica dos Açores se localiza, precisamente, na Serra de Santa Bárbara.
Uma paisagem, como a da Serra de Santa Bárbara, é um daqueles lugares onde a natureza e a cultura se cruzam em múltiplas dimensões. O belo e o sublime naturais estão longe de se esgotarem na componente descritiva e classificativa do labor do naturalista, ou no esforço de conhecimento e compreensão do ecologista. A paisagem natural, como aquela de que este livro amorosamente trata, desafia-nos, na sua perturbante combinação entre poderosa beleza e desprotegida fragilidade, a repensarmos o nosso lugar e estatura, como indivíduos, comunidades e civilização, nesta crucial época de encruzilhada que nos é dado viver.
Essa exigência de indagarmos sobre o sentido das nossas vidas, a partir da experiência da comunhão com a Natureza, faz parte do nosso património histórico e cultural. De Francisco de Assis e Frei Agostinha da Cruz a Ralph Waldo Emerson. De Henry David Thoreau e Teixeira de Pascoaes a Sebastião da Gama. Contudo, esse imperativo é hoje tanto ético como incontornavelmente político. Escrevo estas linhas, numa altura em que, pela primeira vez na história da habitação humana da Terra – o único Planeta da nossa Galáxia onde comprovadamente existe vida exuberantemente complexa – todos os povos e nações têm consciência de uma simultânea e devastadora pandemia (Covid-19), a todos obrigando a medidas de quarentena e confinamento, que não podem fazer mais do que minimizar o saldo negativo de sofrimento, vidas perdidas e riqueza delapidada que a expansão avassaladora dessa doença deixa no seu rasto. Qual a ligação entre a Serra de Santa Bárbara e esta tragédia da era política e económica da globalização, pode o leitor legitimamente interrogar-se. A conexão, ao contrário do que poderia parecer a uma primeira vista, é íntima e profunda, vinculando-se directamente com as causas da pandemia. Esta nova doença, como 75% de todas aquelas que têm surgido nas últimas décadas, têm na sua génese um processo de zoonose, neste caso a transmissão de um vírus animal (da família do coronavírus) para um hospedeiro humano, que por sua vez inicia uma gigantesca série de cadeias de contágio infecioso pela nossa espécie. É um processo que se descreve naturalmente, mas cuja origem está relacionada total e exclusivamente com causas artificiais, isto é, com o modo brutal como a humanidade tem destruído os mais diversos tipos de ecossistemas, que servem de habitat para as outras espécies, que têm sido exterminadas, capturadas, vendidas em mercados informais, como os da cidade chinesa de Wuhan, onde se localizou o epicentro desta pandemia sem fim à vista. Esta pandemia é uma retroacção negativa da sexta extinção da biodiversidade, que é um dos capítulos mais sinistros do gigantesco drama da crise global do ambiente e do clima que ameaça empobrecer a Criação e conduzir a nossa orgulhosa e arrogante civilização a um colapso irreversível.
Este livro sobre a Serra de Santa Bárbara – em boa hora editado pelo Município de Angra do Heroísmo por iniciativa do seu presidente, Álamo de Meneses – só ganhará o seu sentido mais rigoroso, se o colocarmos no âmbito deste enquadramento mais amplo, tanto no espaço como no tempo. Ao protegerem-se as paisagens e os ecossistemas naturais, como felizmente ocorre através de tantos gestos e sinais concretos dados pelas políticas públicas regionais e concelhias, pelo envolvimento de académicos, e por tantos actores cívicos, culturais e sociais da Região Autónoma dos Açores, estão a ser criadas as condições de possibilidade em que deverá assentar a esperança realista num futuro inclusivo e sustentável para este arquipélago, de que Portugal tanto se pode orgulhar. Ao substituir a arrogância da avidez dirigida ao ganho material, imediato e sórdido, pela humildade da gestão prudente do património comum, ao recusar o abuso intrusivo na manipulação das paisagens e dos ecossistemas naturais, pelo respeito e deslumbramento, que inspiram e se traduzem em medidas concretas de conservação e protecção, reforçando valores objectivos e subjectivos que irão enriquecer o capital ecológico das gerações futuras, os Açores assumem-se como defensores da dignidade humana, ao mesmo tempo que actuam como embaixadores de um futuro duradouro e habitável para a comunidade planetária como um todo. Uma comunidade, na qual a nossa espécie deverá aprender a estabelecer relações de harmoniosa sinergia com todas as outras criaturas da fauna e da flora terrestre e marinha, administrando com vista ao bem-comum, os ecossistemas de onde brota a energia vital que a todos nos alimenta.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 12 de Agosto de 2020, pp. 26 e 27.