NO FUTURO NÃO HÁ SALAS DE PÂNICO

Na misteriosa ligação entre o tempo e o espaço, esses dois modos elementares dos humanos representarem e navegarem na realidade mundana, o espaço aparece sempre como a fachada manifesta e manipulável pelo olhar e pelo gesto, mas é no tempo que reside, como Santo Agostinho tão bem expressou nas Confissões, a inexplicável raiz da verdade de que apenas suspeitamos. No tempo, roçamos como que fisicamente na franja essencial da existência. No modo como pelo tempo e no tempo, despontamos, atingimos o nosso auge e declinamos as nossas forças vitais, encontra-se o elemento mais íntimo e pessoal da fragilidade da condição humana. Não aquela fragilidade que, vista a partir da óptica do princípio da dominação, deve ser corrigida e suprimida pelo advento da força e do poderio, mas sim a fragilidade como matriz da nossa inquietação humana, A fragilidade de cujo reconhecimento e aceitação depende a realização e a reconciliação da nossa própria humanidade.

A escala do futuro é comum e macroscópica

Não admira que, sempre que temos de pensar sobre a nossa relação com o futuro, nos socorramos abundantemente de metáforas espaciais. O futuro aparece como um horizonte, que se pode desenhar. Ou um destino, mais ou menos distante, para onde podemos navegar. O problema é que o futuro é completamente opaco e inesperado. Essa invisibilidade torna-se patente na tragédia banal, cuja natureza é quase sempre inesperada, na irrupção violenta do absurdo acidental, que fere ou mata, em plena e amena luz solar. A matéria do futuro é a da secreta textura do tempo. Por isso, pensar o futuro assumindo a total incerteza da temporalidade é um exercício que não nos pode deixar tranquilos e muitos menos indiferentes.

No tempo actual, as marcas de convulsão estão perfeitamente visíveis na carne do espaço mundano. Da crise ambiental e climática, às vagas cada vez mais volumosas de refugiados, fugitivos e párias, que transformam o seu desespero em energia para sobreviver. Quando os castelos de pedra tombam, é impossível não vislumbrar uma paisagem futura onde nos antecipemos como potenciais vítimas, debaixo dos seus escombros. Como poderemos, assim, orientar-nos face ao futuro?

A primeira etapa da resposta é perceber que o “para onde?”, referido ao futuro, é sempre metafórico. No tempo não existem mapas nem sistema GPS. A segunda etapa é perceber que o futuro pode ser declinado em grande angular ou em teleobjectiva. Podemos sentir uma genuína preocupação com o futuro a uma macro-escala, como incidirmos essencialmente sobre a nossa vida mais individual, na perspectiva da carreira, do nosso bem-estar, da nossa família e amigos. Não há ninguém que viva exclusivamente no ar rarefeito da macro-escala, ou que se consiga embrenhar exclusivamente no micro ecossistema individual e familiar. Na vida concreta das pessoas de carne e osso, a auscultação do futuro é atravessada sempre por esses dois continentes. O que existe, claramente, é uma dosagem diferente dessas duas dimensões quando analisamos perfis particulares, sendo que, na grande maioria dos casos a esfera do futuro micro e próximo prevalece na hierarquia das preocupações, em contraponto ao futuro macro e estratégico.

Juntos e rodeados por ídolos mortos

O primado da proximidade e da pequena escala na ponderação do futuro não é apenas uma compreensível característica da nossa frágil condição humana em geral, mas algo que amadureceu e se consolidou com a história moderna, precisamente, com o advento imperial do princípio da dominação. A explosão da riqueza material com o capitalismo, e o consumismo que lhe é inerente, levou à ilusória hiperinflação da importância da “vida privada”, esse conceito curioso que considera como revestida de maior dignidade a esfera da existência que ocorre, aparentemente, à margem da esfera pública. O individualismo, que hoje parece quase “natural”, demorou o seu tempo a amadurecer, mas estava já patente nas interrogações de Benjamin Constant, em 1819, sobre o desinteresse dos cidadãos em participarem mesmo nos gestos básicos da eleição de representantes políticos. Hoje, como bem tem analisado Byung-Chul Han, o individualismo penetrou nas próprias culturas de trabalho, ajudando a extinguir os velhos focos de sindicalismo, fazendo que o “trabalhador” de ontem, se tenha transformado no “colaborador” de hoje, aquele que compete consigo próprio por melhores desempenhos…

Não surpreende, portanto, que perante as sombras que se projectam sobre o futuro colectivo, tantos sejam os sintomas de escapismo para dentro da crisálida da felicidade individual, transformada numa espécie de confortável sala de pânico. Contudo, e aqui chegamos a uma tese central: o futuro pode ser sondado na perspectiva individual, mas a sua realização efectivas acaba por convergir, sempre, num registo comum, partilhado, mesmo que involuntariamente e em doses diferentes, por todos. O futuro macro não se deterá perante as portas do futuro micro, por mais blindadas que estas sejam. Imaginemos, em 29 de Junho de 1914, no ameno estio de uma Europa próspera e senhora do mundo, o que sentiram milhões de leitores da imprensa, narrando o assassinato ocorrido na véspera em Serajevo do herdeiro do trono austro-húngaro e de sua mulher, às mãos de um nacionalista sérvio. Na altura, o assassinato de estadistas era um acontecimento bastante comum, dada a utilização frequente do terrorismo como forma de manifestação política. Duvido que muitos tivessem sido os leitores a considerar, mesmo no complexo mês de Julho de 1914 quando se verificou o colapso das manobras diplomáticas, que de algum modo a sua existência particular – no quadro das expectativas e projectos que cada ser humano transporta para o seu desenho de futuro – estivesse posta em risco. E, no entanto, a I Guerra Mundial, cujo rastilho foi aceso nesse dia de Serajevo, veio obrigar 70 milhões de homens a envergar uniforme, descendo para o sangue e a lama de uma guerra infernal que mataria, feriria e mutilaria metade desse número, afectando também a vida de centenas de milhões de outras pessoas, na Europa e no mundo. A verdade do futuro, a sua pedra de toque, experimenta-se sempre em comum. Por superlativa analogia, o futuro por onde já entrámos, da crise estrutural e ontológica da nossa única e misteriosa habitação planetária, será ainda mais ostensivamente comum, sem santuário nem refúgio seguro. Será, com fortíssima probabilidade, um tempo de ruidoso crepúsculo de todos os ídolos que adorámos no frenesim da modernidade: potência, poderio, dominação, velocidade, capital. Nenhum desses bezerros de ouro garantirá imunidade nesse fim da história em forma de beco. No espectáculo do futuro não haverá espectadores. Todos estaremos no palco.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 26 de Fevereiro de 2020, pp. 27-28.

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