Tenho dificuldade em acreditar que alguma coisa de substancial irá mudar nas políticas públicas nacionais (e na atitude da opinião pública e eleitoral) em relação às causas fundamentais das cheias que assolaram Lisboa e outras regiões do país. Como também tive muitas reservas em supor que alguma lição tivesse sido aprendida com as mais de cem vidas perdidas nos dois mega incêndios de 2017. Ou, ainda, que os responsáveis políticos europeus, à medida que vão substituindo o gás natural por carvão para alimentar o esforço de guerra contra a Rússia, tivessem a decência de se calarem sobre as suas pretensas ambições ambientais e climáticas. Na corrida para a catástrofe planetária em que se transformou a história contemporânea, não são apenas os problemas que ganharam uma celeridade incomparavelmente superior à da lenta tartaruga sobre cuja carapaça simulamos colocar as nossas soluções. Pior do que isso, com uma velocidade seguramente inédita na história de que há registo, aprendemos a arte de nos alhearmos das verdades inconvenientes, ganhando um sombrio talento para nos alijarmos do fardo do pensamento e da decisão. Num certo sentido, nem as vítimas, nem os supostos responsáveis pelos acontecimentos nefastos querem permanecer demasiado tempo sob a tensão de encontrar a etiologia das causas e o fio condutor das respostas para problemas pelos quais, no fundo, não se sentem responsáveis.
Julgo que continua a ser correto considerar, como o fez Ulrich Beck na sua obra de 1986, A Sociedade de Risco, que vivemos em regime de irresponsabilidade difusa e organizada. Nenhum agente político parece acreditar que possa ir para alem da gestão do já instalado no decurso do escasso período em que se encontra num executivo, num parlamento, num município. Contudo, importa tentar ir mais longe na compreensão das raízes desta má-fé que parece, hoje, confundir-se com a consciência inteira.
Num livro publicado em 1979, Elizabeth Fischer procurou dar um contributo às emergentes teorias feministas (Woman’s Creation: Sexual Evolution and theShaping of Society. New York: McGraw-Hill). Nesse estudo, a autora procurava analisar o processo de diferenciação do papel social dos géneros, considerando que foi sobretudo a partir do dealbar da domesticação dos animais e da agricultura que se iniciou a formação de sociedades progressivamente estratificadas e patriarcais. No plano tecnológico, regista-se também uma grande diferenciação. No vasto período da história humana em que vivíamos em pequenos grupos de caçadores-recolectores, com uma alimentação dominantemente vegetariana, a tecnologia mais importante era aquela que trazia energia para dentro do espaço doméstico, como era o caso das cavernas onde permaneceram os mais duradouros testemunhos dos nossos antepassados. Essa energia traduzia-se nos alimentos recolhidos nos amplos espaços naturais, como frutos, raízes, cereais selvagens, bem como pequenos mamíferos e moluscos. A tecnologia que permitia ter acesso a esses alimentos era essencialmente a da construção de cestas, que permitiam guardar e transportar em segurança e quantidade razoável esses alimentos. A isso, Elizabeth Fischer designou como: “A Teoria da Cesta na evolução humana” (Carrier Bag Theory of human evolution) (1). Teria sido uma tecnologia dominantemente feminina, por oposição a uma tecnologia predominantemente masculina – aperfeiçoada posteriormente – e que consistia em projetar energia para o exterior, através de lanças, facas, flechas e outras armas. No fundo, uma tecnologia da manutenção e da conservação, contrastando com outra, da predação e conquista,
Esta hipótese de Elizabeth Fischer ganharia uma enorme amplificação através de um breve, mas muito influente opúsculo da prolífera escritora Ursula K. Le Guin, intitulado “A Teoria da Cesta na Ficção” (The Carrier Bag Theory of Fiction), publicado pela primeira vez em 1986, reeditado em 2019 pela editora Terra Ignota). Por analogia com a teoria original de E. Fischer, Le Guin irá defender uma conceção de literatura concentrada não na figura do herói – um modelo de redutora personificação das técnicas armamentistas – mas no mundo narrativo mais amplo, plural e complexo, onde todas as personagens e tramas encontram o seu habitat. Le Guin pretendia uma literatura criadora de mundos, centrada na rede de relações e de interdependências entre os diversos planos e entidades, e não afunilada nos conflitos e na luta até à morte entre heróis narcisistas. Almejava uma literatura da vida em florescimento e não da morte e agonia que acompanha os nossos mais de três mil anos de belicoso imaginário épico.
Talvez resida aqui, pelo menos uma parte do segredo da nossa inquietante passividade e conformismo perante essa catástrofe caminhando na nossa direção, alimentada por uma nova espécie de “banalidade do mal”, que se manifesta no nosso encolher de ombros, cúmplice com a máquina de crescimento e destruição a que chamamos economia. Nós não só perdemos o antigo mundo, de uma vastidão aparentemente sem fim numa geografia desconhecida, como perdemos a tecnologia integradora onde se recolhiam os frutos silvestres, nesse saco onde, à noite, junto à chama grupal, se erguiam as estórias e se desenhavam sonhos partilhados. Recolhidos na precária e vigiada paz dos nossos bunkers urbanos, compensamos as feridas dos nossos combates quotidianos, não com sementes e frutos secos misturados de realidade e fantasia, mas com as ficções literárias e sobretudo virtuais onde se erguem, apenas e só, novos heróis para novas guerras. A cesta de alimento e imaginário, foi definitivamente quebrada. No nosso bunker, parecem sobrar apenas espadas, com lâminas de muitas dimensões e feitios. Mas sempre, implacavelmente, cortantes.
- Existe uma recente tradução portuguesa desta obra: Ursula K. Le Guin, A Ficção como Cesta e outros Textos, tradução de Sofia Gonçalves, Lisboa, Dois Dias Edições, 2022.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de letras de 28 de dezembro de 2022, página 28.