As abelhas existem há mais de 100 milhões de anos. Sobreviveram até à catastrófica extinção dos dinossáurios, na colossal colisão de um asteróide, recuando 65 milhões de anos no passado profundo. É provável, contudo, que não sobrevivam à – por este caminho, seguramente brevíssima – passagem da espécie homo sapiens por este planeta. Em 23 de Setembro, a RTP 2 exibiu um competentíssimo documentário francês, intitulado, “Um Mundo Sem Abelhas”. Os realizadores, Elsa Putelat e Nicolas Dupuis percorreram uma parte significativa do nosso mundo, de França à China, passando pelo Cambodja, Israel, Colômbia e EUA, filmando e entrevistando diferentes lugares e protagonistas de mais uma tragédia ecológica em curso. Com efeito, é do conhecimento público que nos últimos 15-20 anos a mortalidade das abelhas aumentou de uma taxa anual anterior de 5% para perdas que podem ultrapassar os 50%. E estamos a falar das abelhas domésticas, aquelas de quem os apicultores cuidam como seu ganha-pão. Só na Europa calcula-se que existam mais de duas mil espécies selvagens de abelhas, relativamente às quais é mais difícil estimar a taxa anual de mortalidade.
As investigações toxicológicas levadas a cabo responsabilizam, sem margem para dúvida, os gigantes mundiais da indústria química e a mais recente geração de agro-tóxicos, sobretudo pesticidas e herbicidas, designados por neonicotinóides, como o fipronil e o glifosato, entre muitas outras marcas comercializadas. Esses agentes tóxicos estão muitas vezes associados a culturas de OGM (organismos geneticamente modificados) e a grandes explorações de cereais como o milho e a soja, entre outras. No documentário apicultores resilientes mostravam como eram obrigados a mover as suas colmeias cada vez que grandes propriedades de culturas intensivas se implantavam na sua vizinhança. Esses produtos sintéticos são também nocivos para muitas outras espécies, incluindo a nossa.
Apesar de todas as evidências, o poderio esmagador dessas empresas atrasa os parlamentos e faz recuar os governos, incluindo o de um país com a dimensão da França. No Parlamento Europeu, algumas vitórias foram alcançadas, mas o esforço das empresas para seduzirem por todos os meios (um dos entrevistados contava a tentativa de corrupção de que havia sido alvo) aqueles que decidem está longe de poder ser dado como frustrado. O que mais me surpreendeu foi a triste confirmação de que vivemos numa época em que tudo está à venda, incluindo o saber técnico e científico. Muitas universidades, institutos e centros de investigação colocam-se objectivamente (e subjectivamente, através dos financiamentos empresariais da investigação) ao serviço dos exterminadores das abelhas. O documentário passa em revista algumas das patentes actuais para substituir as abelhas por polinizadores artificiais. Desde grosseiras máquinas, até velozes drones pulverizadores, passando por réplicas robóticas de abelhas…Só a arrogância e a estupidez que são a pandemia permanente do nosso tempo pode justificar que alguém possa pensar que alguma criação tecnológica poderá ficar perto daquilo que a Vida demorou milhões de anos a gerar. Com a agricultura a continuar a ficar na mão das grandes multinacionais e na propriedade de predatórios fundos de investimento não tardaremos a sentir, mesmo na Europa, a carestia dos alimentos. Como em 2008 e em 2010/11 (aquela que levou à dita “Primavera árabe”). Se as abelhas morrerem, a fome regressará em proporções bíblicas. Com democracias desvitalizadas e venais, estamos quase tão desprotegidos como os generosos insectos que, entre outros bens de valor incalculável, produzem o mais sagrado e doce de todos os alimentos.
Publicado no Jornal de Letras, edição de 6 de Outubro de 2021, página 29.