NÃO HÁ CRIMES PERFEITOS

Na madrugada de 11 de setembro, a tempestade Daniel esmagou a cidade portuária de Derna, na Líbia. Enquanto os seus habitantes dormiam, uma muralha de água com a largura de 100 metros, aproveitando o leito seco de um rio, varreu o centro da cidade, derrubando tudo à sua passagem, incluindo bairros residenciais. Horas depois desta desgraça, já se contavam 5 000 mortos e 30 000 refugiados. O interesse pelo que terá acontecido às dezenas de milhares de desaparecidos cedo esmoreceu na imprensa ocidental. O caso foi remetido para mais uma das consequências das alterações climáticas. Isso não é falso, pois 5 das 30 maiores tragédias naturais em África, registadas desde 1900, ocorreram no último ano…O problema é que algumas das formas mais subtis de mentira residem nas meias-verdades.

A causa essencial da mortandade residiu na rutura de duas barragens construídas há 50 anos, no auge do poder de Kadhaffi na Líbia. Essas barragens – de Derna e Abu Mansur – colapsaram, criando um tsunami urbano de violência inaudita. Para perceber o pesado silêncio que se abateu sobre este desastre humanitário, basta perguntar pelos motivos que levaram estas infraestruturas a serem totalmente desprovidas de manutenção. A resposta é de uma dolorosa simplicidade: entre fevereiro e outubro de 2011 o governo de Kadhaffi foi derrubado, com a cumplicidade ativa ou indiferente, das principais potências do mundo ocidental e desenvolvido. O pretexto foi uma pretensa guerra civil, na qual as forças governamentais estariam a cometer crimes contra populações civis. A OTAN tomou o assunto nas suas mãos. Durante 7 meses os mais modernos aviões de combate da Grã-Bretanha, de França, de Itália, do Canadá, entre outros países, forneceram apoio aéreo aos “rebeldes”, agrupados em torno de uma autodesignada Comissão Nacional de Transição (CNT), onde pontificavam grupos terroristas islâmicos, incluindo a Al Qaeda. Os EUA, de Obama e da intransigente Secretária de Estado Hillary Clinton, controlaram as operações a partir da retaguarda. A Rússia de Putin não se meteu na refrega, mas deixou que ela acontecesse, ao reconhecer a CNT como entidade credível. Para a OTAN, algumas das infraestruturas civis, como sistemas de irrigação, foram considerados alvos legítimos. O regime de Kadhaffi tombou, e este foi assassinado com uma barbaridade que me recuso a narrar. Desde 2011, a Líbia, que com Kadhaffi era um purgatório próspero, passou a ser um inferno miserável a tempo inteiro. O país que chegou a ter um PIB per capita superior ao dos EUA, transformou-se num caos de violência entre os 1 600 grupos armados em que a famosa CNT se dividiu. Sem Estado não se cuida de barragens.

Alguns dos operacionais ocidentais que participaram nesta conspiração escreveram livros, como quem vai ao confessionário. Além do controlo sobre o petróleo líbio, para os vencedores, Kadhaffi tinha de ser silenciado. Alguns dos “libertadores” do povo líbio, como Sarkozi, queriam ocultar o apoio financeiro recebido do ditador de Tripoli. O erro letal de Kadhaffi foi o de ter acreditado na promessa do Ocidente, de o receber no “mundo com regras”. Acreditou em Bush, Jr. Acreditou em Blair, que até o visitou em 2004. Acreditou na UE, que com ele estava a negociar um notável acordo para acolhimento de refugiados. Hoje, na Europa, quando os cidadãos se queixam das vagas de refugiados que chegam da Líbia e da Síria, é aos seus governos em Paris, Londres ou Roma que devem pedir explicações.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias em 23 de setembro de 2023, página 9.

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