A ideia de encruzilhada é tão antiga como a história do pensamento ocidental. Podemos começar logo pelas palavras de Parménides no seu auroral Poema: “Acerca disto a decisão [krisis] reside neste facto: é ou não é” (1). A decisão metafísica de Parménides veio condicionar não só o modo como o Ocidente representou filosoficamente o mundo e o destino da humanidade nele, como, a partir da Modernidade, com a ascensão das utopias tecnológicas, acabou mesmo por condicionar o modo como a humanidade veio condicionar a reconfiguração física do mundo, conduzindo à Época do Antropoceno, que designa a nossa contemporaneidade como sendo a fusão irreversível do tempo geológico com a temporalidade histórica.
No último capítulo da sua obra-prima, Primavera Silenciosa (1962), Rachel Carson revisita a metáfora da encruzilhada, rememorando, também, um conhecido poema de 1915, de Robert Frost. Desta vez, a encruzilhada já tem em conta o risco ontológico e existencial que a crescente desmesura do poderio tecnológico humano acarreta para o Planeta, e, inerentemente, para nós próprios. Escutemos Rachel Carson: “Estamos, neste momento, no ponto onde duas estradas divergem. Mas, ao contrário das estradas do famoso poema de Robert Frost, elas não são igualmente justas. A que vimos percorrendo há muito tempo é enganadoramente fácil, uma imensa autoestrada lisa, onde avançamos a grande velocidade, mas em cujo final está o desastre. A outra bifurcação da estrada – aquela «menos percorrida» – oferece-nos a última, a única hipótese de chegarmos a um destino que garanta a preservação da nossa terra.” (2)
Em 2023, só um milagre nos poderia arrancar da autoestrada hedonista por onde embarcámos, acelerando em direção do “desastre”. O problema do fim físico da história, para onde caminhamos, reside no facto de a utopia moderna, tecnocientífica, ter colocado como novo centro da história um novo mundo fechado. Desta vez, não o da astronomia clássica geocêntrica, mas a de um mundo destinado exclusivamente ao obrar utilitarista da humanidade. Nesta estrada onde a velocidade nos impele sem sequer fazermos esforço, a Natureza não se limitou a ser reduzida a mera matéria-prima, “desencantada”, no quadro daquilo que Max Weber designava como “racionalização”, ou desenraizada pela “morte de Deus” e pelo apoderamento instrumental, físico-matemático e geométrico do mundo. A morte de Deus, na profunda interpretação de Nietzsche, muitas vezes distorcida por interpretações simplistas, não liquidou apenas o Criador, lançou também o opróbrio da vulgaridade sobre a sua obra. Perdemos o respeito pela Natureza. A cada triunfo da tecnociência, maior a queda consentida ao prestígio da Natureza, mais manipulação e exploração dela poderíamos exigir de acordo com a nossa conveniência. Contudo, ao perdermos respeito pela Natureza, ao degradarmos o mundo, acabámos por mergulhar num abismo indefinido, onde também deixámos de ser dignos de respeito e nos passámos a tratar como pura e simples matéria de instrumentalização, apesar da retórica cada vez enrouquecida dos “direitos humanos”. Em vez da ideia reguladora e, de alguma forma, transcendente, de progresso capaz de nos conduzir a uma ordem superior de condição humana pelo nosso próprio esforço (Rousseau e Kant), pela nossa capacidade se superação e sublimação (Nietzsche), a distopia moderna embarcou-nos, sem saída ou possibilidade de remissão, numa vertigem de “mau infinito” (das Schlecht-Unendliche), à maneira de Hegel, de que a devastação ecológica é uma representação tragicamente rigorosa: o mau infinito está presente no consumismo, na economia de mercado, na idolatria do crescimento económico. Trata-se de uma infinita acumulação de finitos, como se daí pudesse resultar algo mais do que a intensificação da mesmidade, às portas do deserto e do colapso.
A modernidade abriu-nos duas estradas. Nós escolhemos a errada, A outra, que nos identificava como um projeto em progresso, à beira de uma metamorfose superior, ficou, definitivamente, por percorrer. Abraçámos a estrada do mundo fechado para a orgia da nossa cupidez. E foi isso que conseguimos. Chegará o momento em que, numa derradeira fúria, realizaremos o apogeu ruidoso do “niilismo completo”. Depois disso virá o Grande Silêncio, onde recomeça um tempo sem consciência que o registe.
Notas
- Kirk, G.S. e J. E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, tradução de Carlos Fonseca et alia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 280.
- Carson, Rachel, Primavera Silenciosa, tradução de Ana Maria Pereirinha, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2022, p. 235.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 1 de novembro 2023, página 33.