Na preparação para a COP 28 (conferência dos países integrantes da Convenção do Clima de 1992), que se realizará no Dubai de 30 de novembro a 12 de dezembro do corrente ano, multiplicam-se os relatórios das agências das Nações Unidas que dão conta, infelizmente, não da travagem, mas da intensificação da velocidade de um rumo coletivo que, cada ano que passa, transforma a colisão definitiva da civilização com o Sistema-Terra de uma possibilidade num destino. Um desfecho tornado inevitável pela irresponsabilidade ética das elites económico-políticas e pela passiva anuência de quase todos nós. Para além da própria Convenção (UNFCCC), também o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) e a Organização Meteorológica Mundial (WMO) têm povoado este mês de novembro com relatórios que indicam o estado da arte, bastante preocupante, dos assuntos a abordar pela magna reunião que começará amanhã. A própria agenda da reunião é modesta, pois para que se possa declarar sucesso bastará que que se crie um fundo para o Mecanismo de Perdas e Danos (destinado a compensar os desastres causados pelas alterações climáticas nos países menos desenvolvidos), projeto, que desde a COP de Varsóvia (2013) tem sido sempre discutido e adiado. Matérias mais delicadas, envolvendo transferências financeiras Norte-Sul, como os famosos 100 mil milhões de dólares anuais (em discussão desde a Agenda XXI do Rio de janeiro, em 1992), até à eventual taxação dos fluxos financeiros, não terão grande probabilidade de ir longe.
Logo que o Acordo de Paris foi assinado e várias vezes depois, escrevi neste espaço (por exemplo, JL de 23 12 2015 e 30 11 2022) que uma análise objetiva e crítica do Acordo não indicava nada de bom quanto ao seu futuro. A primeira razão para isso residia na sua origem. Em 2014, Obama e Xi Jimping delinearam uma estratégia que satisfazia as suas agendas nacionais e pessoais, mas que constituía uma verdadeira artimanha diplomática. No direito internacional público só poderemos falar de institutos sérios quando os países se envolvem com objetivos concretos, com calendários definidos, sujeitando-se a monitorização independente e ao pagamento de sanções claramente definidas à partida, em caso de incumprimento. Isso acontecia no caso do Protocolo de Quioto, que esteve em vigor entre 2005 e 2012, mas está completamente ausente no Acordo de Paris, que constitui um manjar para qualquer político demagogo, especialista em fazer poses com custo zero: prometer ações que só atingirão resultados depois de terem saído dos lugares de comando onde se encontram na altura de fazer as promessas… No Acordo de Paris, as partes são irresponsáveis, os compromissos são voluntários e não vinculativos (as NDC, contribuições de redução das emissões nacionalmente determinadas), nem submetidos a eventuais sanções. Embora os dirigentes dos EUA e da China tenham especial responsabilidade, o Acordo de Paris contou com a cumplicidade de todos os outros protagonistas que, com forte emoção, celebraram este acordo condenado ao insucesso. Obama sabia, em 2014, que o Senado dos EUA, que em maio de 1997 (mesmo antes do Protocolo de Quioto) aprovou por unanimidade (95-0) uma moção recusando subscrever qualquer tratado em que os EUA tivessem de fazer reduções de emissões de gases de efeito de estufa (GEE) sem que a China e a Índia (países, na altura, dispensados de o farem ao abrigo do princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”) o fizessem também. Os EUA fazem parte do Acordo de Paris, apenas porque este não é um tratado internacional vinculativo (embora na sua letra tal seja afirmado!). Para Washington trata-se de uma mera ordem executiva presidencial, e não de um tratado, pois neste caso teria de ser aprovado por uma maioria qualificada de dois terços do Senado.
Sem obrigação de cumprimento, a patologia venal das nossas democracias destrói qualquer esforço de combate sério à crise ambiental e climática. Os nossos governos trabalham no curto prazo, enquanto os desafios ambientais e climáticos se estendem num horizonte multigeracional. As chancelarias são eleitas pelos votos dos eleitores, mas respondem sobretudo pelas teias de poderosos interesses privados, bem incrustados nos gabinetes e parlamentos (como a recente derrota no Parlamento Europeu de uma proposta para reduzir o uso de pesticidas, tristemente, o demonstra). Os problemas ambientais e climáticos, cuja gravidade vai crescer com o tempo, têm escassos advogados, pois os seus principais visados ou ainda não nasceram, ou são ainda muito jovens, sendo a sua generosidade muitas vezes objeto de troça e paternalismo, como ocorre por todo o lado no que respeita aos protestos climáticos estudantis. Essa situação, transportada para a arena internacional ajuda-nos a compreender que as únicas duas esferas que funcionam nas relações internacionais são as questões comerciais (fluxos financeiros de mercadorias) e os assuntos bélicos. Daí a pujança da Organização Internacional do Comércio, que pode levar os Estados a tribunal, obrigando-os a pagar multas milionárias, ou a importância crescente de alianças militares, sobretudo neste tempo de escalada bélica, com lideranças desvairadas que ameaçam lançar-nos para um caldeirão nuclear, mesmo antes do auge da crise ambiental e climática. O que têm o comércio e a guerra em comum? No final do século XVIII, os pioneiros do otimismo liberal profetizam que o primeiro iria substituir a segunda. Na verdade, o que aconteceu foi uma acumulação a partir do que une ambas as atividades: o poder do dinheiro. A guerra é hoje uma das mais poderosas indústrias do mundo e o armamento uma das mercadorias mais procuradas.
O Acordo de Paris começou com o objetivo de estabilizar a concentração de GEE de modo a impedir até 2100 a subida da temperatura média à superfície do planeta acima de + 1,5ºC, em relação ao período pré-industrial (1850-1900). Em 2015, essa meta era já irrealista pois já aumentámos 1, 2ºC a nível global. O voluntarismo é barato, quando não se tem de prestar contas. A realidade, essa, não se comove nem transige. Em relação a alguém nascido em 1960, uma criança vinda ao mundo em 2023 irá tendencialmente viver num mundo com + 4ºC, sofrendo uma exposição a ondas de calor sete vezes superior.
Publicado no Jornal de Letras, edição de 29 de novembro 2023, páginas 31-32.