Os motins em França só nos próximos anos poderão ser claramente compreendidos. A resposta incendiou-se nas ruas, depois do assassinato de um jovem de ascendência magrebina, num controlo policial, evocando o episódio que levou às 19 noites de violência, no outono de 2005, quando a convulsão se espalhou da periferia de Paris a outras cidades gaulesas. Mas o protesto violento não é exclusivo de jovens de minorias étnicas, como é demonstrado pelas cenas de pilhagem iniciadas pelos coletes amarelos” (gilets jaunes) contra a carestia dos combustíveis, no final de 2018, ou, mais recentemente, no descontentamento, nem sempre cordato, contra o protelar na idade da reforma. Agora, todavia, a destruição foi muito mais extensa. Dos carros, às lojas, escolas, bibliotecas, câmaras, nada escapou à fúria de manifestantes, ainda mais jovens do que os de 2005. Mas, talvez a maior diferença consista em perceber que a pulsão da vingança cega parece ter subjugado o desejo de justiça. Aparentemente, e não apenas em França, os obstáculos de uma realidade dolorosa e imperfeita aparecem como intransponíveis. A descrença na possibilidade de uma política transformadora incendeia ainda mais a guerra social de baixa intensidade em que o país parece ter mergulhado.
Tudo o que acontece em França nunca fica apenas em França. Estas revoltas ocorrem na fase mais sombria da “construção europeia” (talvez seja mais rigoroso falar em “desconstrução”). Depois da pandemia, a liderança da UE e da maioria dos governos nacionais errou completamente na resposta ao desafio decisivo representado pela invasão russa da Ucrânia. Os mesmos líderes europeus que deixaram acumular a tempestade crescente a leste, sobretudo depois de 2014, aceitaram sem pestanejar o papel de meros escudeiros da confessada estratégia americana, que visa aproveitar o sacrifício do povo ucraniano para sangrar a Rússia. Todo o esforço de décadas para construir uma personalidade europeia própria, diversa dos EUA, foi deitado por terra aos olhos do Sul Global. O Presidente Macron, da herança gaullista apenas conservou o narcisismo presidencialista. Esqueceu o legado da história francesa que, desde a derrota frente à Prússia em 1870, estabeleceu uma interdependência entre a “grandeza da França” e as fronteiras de “uma Europa do Atlântico aos Urais”. As bandeiras identitárias europeias estão caídas no pântano do presente. O estado social está em recuo. O pacto ecológico foi uma das vítimas da estupidez das sanções, que visando Moscovo, acabaram por matar a “transição energética”. Com ou sem inflação, o que aparece adiante é o empobrecimento estrutural dos europeus. A novidade política da União consiste em transferir verbas astronómicas dos contribuintes europeus para o complexo militar-industrial dos EUA… A Alemanha, o país mais humilhado desde que a guerra começou, não pode substituir facilmente o súbito défice energético que sofreu, nem os mercados que se encolhem. A recessão germânica significará menos orçamento europeu, e uma locomotiva avariada para o conjunto europeu. A UE, para citar o patético Josep Borrell, é um jardim, mas de promessas murchas, sobrevivendo num niilismo sem memória e vazio de futuro. Sem uma Europa capaz de ser rosto de esperança, até o desespero parece credível. É cada vez mais provável que a extrema-direita nacionalista – empurrada mais pela física do que pela política – acabe por franquear as portas do palácio do Eliseu e da chancelaria junto ao Spree.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 8 de julho de 2023, página 9.