A GRANDE ACELERAÇÃO. Desde 1976, quando comecei a escrever sobre os temas de ambiente, até hoje, o grau de informação e conhecimento disponível multiplicou-se exponencialmente. Contudo, de um ponto de vista epistemológico considero que o trabalho de Donella Meadows, e da sua equipa, na redação do relatório de 1972, The Limits to Growth, continua a ser um contributo magistral para a compreensão integrada de um problema complexo e global, que costumo designar como crise global do ambiente, subsumindo aí as alterações climáticas, a perda da biodiversidade e todas as outras dimensões do modo desastrado como estamos a habitar a Terra.
Nessa altura julgávamos ter mais tempo para organizar uma resposta estratégica a esses desafios. Contudo, estes 50 anos que passaram corresponderam à maior parte do que as Ciências do Sistema Terrestre (uma linha científica interdisciplinar onde me filio) consideram ser o período da “Grande Aceleração” (depois de 1950). O crescimento exponencial de dezenas de indicadores manifestando o impacto antrópico negativo sobre o Sistema Terrestre, intensificado pela expansão do modelo neoliberal de capitalismo, conduziu-nos a uma nova e muito mais perigosa Terra. Temos hoje os níveis de concentração de CO2 que ocorreram há 3, 5 milhões de anos, no Pliocénico…A dicotomia entre mitigação e adaptação, que dominou décadas de diplomacia climática, está hoje ultrapassada pelo fracasso parcial da primeira. A adaptação está a ganhar terreno, o que é um indicador de insucesso da nossa ação coletiva.
A MAIOR CEGUEIRA. Perante a vertiginosa crise global do ambiente e do clima, deveríamos estar hoje, enquanto cidadãos e Estados membros do sistema internacional, envolvidos numa intensa cooperação compulsória, guiados por uma rede de institutos de direito internacional público, que deveriam servir como base de uma governação global para a sobrevivência coletiva de toda a humanidade. Infelizmente, como se tivéssemos sido vítimas de uma febre coletiva, vemos os Estados a desenterrarem o machado de guerra, entre si, e contra o futuro de todos.
UM ACORDO MORTO À PARTIDA Imediatamente após a assinatura em 2015 do Acordo de Paris (AP) manifestei a minha total insatisfação com esse instrumento inadequado à sua missão. Resumindo, estes são os meus principais pontos de discordância: a) Um contraste absoluto entre objetivos ambiciosos (o teto de 1,5ºC) e meios totalmente voluntaristas; b) O AP constitui uma regressão em relação ao Protocolo de Quioto (1997). Apesar do enraizamento comum na Convenção do Clima de 1992 (UNFCCC), a verdade é que o AP não possui metas vinculativas, mecanismos de monitorização, supervisão e previsão de sanções por incumprimento. Apesar de todas as dificuldades, o Protocolo de Quioto responsabilizava os Estados de acordo com o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, indo na direção certa da redução efetiva das emissões; c) A génese do AP ajuda a perceber os maus resultados que dele derivam. Com efeito, foi o Presidente Obama, em negociação com o Presidente Xi, da China, que em 2014 deram os passos fundamentais para que este acordo fraco se tornasse realidade; d) Obama quis fazer voltar os EUA à grande cena da diplomacia ambiental e climática. A via seguida, contudo, foi “barata” e enganadora. Em vez de enfrentar o Senado (cuja maioria qualificada é fundamental para a assinatura de tratados internacionais), que desde maio de 1997 bloqueia qualquer compromisso climático dos EUA, preferiu um caminho tão rápido como ineficaz. Isso está confirmado pelo facto de que o AP é considerado como uma iniciativa presidencial em política externa, cuja fragilidade é tal que nem necessita de ratificação no Senado.
No dia em que os países criem para a proteção da Terra um instrumento tão disciplinador e implacável no cumprimento, como o é a Organização Mundial do Comércio, então estaremos no caminho certo…
O PECADO MORTAL DA UE. O grande problema do Pacto Ecológico Europeu, e de todos os programas estratégicos da UE, de natureza plurianual (e neste caso plurigeracional), radicam nas insuficiências matriciais da nossa UEM. Como tive ensejo de esclarecer em dois ensaios sobre as raízes e perspetivas da crise do euro (publicados em 2014 e 2019), a nossa união monetária não tem o músculo federal necessário para poder concretizar políticas comuns ambiciosas. Não aprendemos a lição de Robert Mundell, no seu fundamental artigo de 1961, sobre uniões monetárias, nem com o notável (e muito esquecido) MacDougall Report, de 1977. Com um orçamento regular da UE (não estou a mencionar situações excecionais como a da pandemia e do PRR) pouco acima do 1% do PIB agregado dos 27, não é possível concretizar toda a ambição, por exemplo, do referido Pacto Ecológico Europeu. Infelizmente, já estamos claramente a ver o recuo de diversas políticas, e não só na agricultura. O ano de 2024 não promete ser brilhante para a causa ambiental.
A IDOLATRIA ECONÓMICA. Uma parte das doutrinas mais razoáveis articuladas em torno da demanda pela sustentabilidade, como o “decrescimento”, e outras com designações mais simpáticas, como é o caso da “economia da suficiência” tocam num ponto crítico, que esteve ausente em muitos outros teóricos do DS, particularmente na década de 90: é um erro pensar que teremos êxito fixando-nos apenas na gestão da oferta, isto é, diminuindo a intensidade energética e material, assim como reduzindo os resíduos, decorrentes dos processos produtivos. Como o próprio William Jevons identificou, há quase dois séculos, naquilo que é conhecido como o “Paradoxo de Jevons”: quando mais eficiente a produção for, mais acessíveis ficam as mercadorias, o que provoca um aumento do consumo e consequentemente crescimento da intensidade energética e material das economias… Sem uma mudança nas atitudes integrantes das culturas de consumo iremos apenas atrasar o colapso ambiental, sem o conseguir evitar. Numa parte do mundo, a justiça obriga a um aumento de produção (o menos ambientalmente danosa possível) e do consumo, tendo em vista a situação degradante de pobreza que afeta ainda muitos milhares de milhões de seres humanos. O que estamos a falar, contudo, nos países ditos desenvolvidos, não é de um regresso à pobreza, mas sim a invenção de um modelo de suficiência voluntária.
É curioso que a ideia absurda de que seria possível um crescimento exponencial infinito num planeta finito surgiu sobretudo no século XX. Os fundadores da economia política clássica do capitalismo, como Adam Smith, considerariam essa ideia demencial. Como escreveu John Stuart Mill, já em 1848, embora a natureza imponha limites ao crescimento material, não há limites para o aperfeiçoamento moral e relacional dos indivíduos, que ele designava pela bela expressão de “Art of Living”.
UMA UTOPIA NECESSÁRIA. Uma das organizações a que estou ligado, a Casa Comum da Humanidade (CCH), luta a nível nacional e internacional pela ideia de uma personalidade jurídica para o Sistema Terrestre, que permitiria uma revolução no direito internacional público e nas negociações ambientais e climáticas. O presidente da CCH, o meu amigo e jurista Paulo Magalhães, formulou essa ideianum livro de 2007, onde é desenvolvida a analogia da Terra com um condomínio, onde existe uma dupla forma de apropriação: privada (as frações) e comum (as partes e funções comuns do prédio). Desde aí temos feito um longo caminho que encontrou uma importante etapa na Lei Portuguesa do Clima de 2021, para a qual demos um contributo aberto e construtivo. Considerar o Clima como Património Comum da Humanidade, como ocorre na lei nacional (a única do mundo que recusa a trivial formulação do Clima como “preocupação comum da humanidade”) é um primeiro passo para construirmos uma dupla soberania estadual: a estrita (a única existente hoje) e a partilhada: a gestão em comum da dimensão funcional e dinâmica dos grandes fluxos planetários, como os ciclos do carbono ou do azoto, ou as interações do Mar e da Atmosfera, fluxos esses que não coincidem com a visão estática e territorial como a Terra é encarada, até hoje, pela Política e pelo Direito.
UMA ÉTICA JUNTO AO ABISMO. Se nos situarmos numa perspetiva ética de modelo kantiano, como é o meu caso, a bondade moral da ação não se mede pela eficácia do resultado concreto da ação (uma diferença fundamental em relação ao utilitarismo de Jeremy Bentham). Uma ação é justa pelo princípio onde enraíza, e não pela recompensa associada ao seu eventual sucesso. Colocar a nossa vida ao serviço do imperativo de salvar o mundo para as gerações futuras tem valor ético em si mesmo. Se não conseguirmos salvar o mundo, fazendo agora uma deriva para a nossa tradição cristã, pelo menos talvez salvemos a nossa alma.
Bibliografia referida
Nota: Para este artigo utilizei parcialmente esta fonte: Santos Silva, Marta e Graça Enes, “Entrevista com Viriato Soromenho-Marques”, Newsletter do Núcleo Português do Instituto de Direito Europeu, fevereiro de 2024, pp. 2-7.
- Meadows, Donella H. et alia.[1972], Os Limites do Crescimento, tradução da Comissão Nacional do Ambiente, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973.
- Soromenho-Marques, Viriato., Portugal na Queda da Europa, Lisboa, Temas & Debates / Círculo de Leitores, 2014.
- Soromenho-Marques, Viriato, Depois da Queda. A União Europeia entre o Reerguer e a Fragmentação, Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2019.
- Mundell, Robert, “A Theory of Optimum Currency Areas”, The American Economic Review, Volume 51, Issue 4 (Sep., 1961), 657-665.
- MacDougall Report, “Report of the Study Group on the Role of Public Finance in European Integration”, Volume I: General Report, Brussels, Commission of the European Communities, April 1977, 68 pp. https://www.cvce.eu/content/publication/2012/5/31/c475e949-ed28-490b-81aea33ce9860d09/publishable_en.pdf
- Magalhães, Paulo, O Condomínio da Terra. Das Alterações Climáticas a uma Nova Concepção Jurídica do Planeta, Coimbra, Edições Almedina, 2007.
- Jevons, William,The Coal Question. An Inquiry Concerning the Progress of the Nation, and the Probable Exhaustion of our Coal Mines, London, MacMillan, 2th ed. 1866. Ver também: “On the probable exhaustion of our coal mines” in R. D. Collison Black (ed.), Papers and Correspondence of William Stanley Jevons, London, MacMillan, 1868, vol. 7, pp. 28–35.
- Stuart Mill, John, Principles of Political Economy with some of their Applications to Social Philosophy, (1ª ed.: 1848), New York, Reprints of Economic Classics, Augustus M. Kelley, 1965.
Viriato Soromenho-Marques Soromenho-Marques, Viriato, “Meio Século de Crise e Política Ambiental. Tempus Fugit”, Jornal de Letras, 17 de abril de 2024, página 30.