Em 1953, o economista Robert Heilbroner (1919-2005) publicou um famoso livro, The Worldly Philosophers, dedicado à apresentação das grandes doutrinas económicas clássicas, de Adam Smith a Keynes, não esquecendo Marx. Foi a esse título que fui buscar a inspiração para esta reflexão, que é também uma homenagem à economista, professora e cidadã Manuela Silva (1932-2019), que nos deixou no passado dia 7 de Outubro. Embora não tenha pertencido ao círculo de amigos mais próximo de Manuela Silva (MS), a verdade é que nas últimas quatro décadas mantivemos sempre uma relação afectuosa, com intervalos, mas nunca com interrupções, baseada em preocupações intelectuais comuns com o futuro do mundo, da Europa e do nosso país.
Sei exactamente quando conheci e falei pessoalmente com MS. Foi durante uma conferência no então ISE (hoje ISEG). Foi no final de Abril de 1983. O Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa (CISEP) organizara uma conferência sobre a evolução recente e as perspectivas da economia portuguesa. Convidado a apresentar uma comunicação para um dos painéis, acabei por a levar a dois. Intitulava-se “Para uma crítica ecologista da economia política”. Foi nesse âmbito que mantive uma animada conversa com uma vigorosa e vibrante professora, muito interessada em aprofundar a compreensão do impacto que a degradação do ambiente poderia causar sobre a economia como esfera social, bem como sobre os seus modelos operacionais e metodologia teórica. Depois desse primeiro encontro sucederam-se as oportunidades de convívio e troca de ideias, em múltiplas conferências em Lisboa e noutros lugares. Lembro-me, com particular saudade, da minha participação, a seu convite, nalgumas das iniciativas do Graal, sempre vinculadas às suas preocupações essenciais com o que hoje costumamos designar por sustentabilidade.
MS é conhecida e foi evocada pelas suas diversas actividades como docente, membro de um dos primeiros governos constitucionais, alto quadro da administração pública, activista da Igreja católica, combatente contra a pobreza, militante do desenvolvimento local, contudo, o que gostaria de sublinhar é o seu contributo para manter a economia fiel às suas origens no aprofundamento e alargamento do pensamento moral, isto é, como uma ciência que ajuda a pensar o mundo em totalidade, e não, como agora dominantemente acontece, que gere, sem dramas de consciência, o processo da sua degradação extractivista e entrópica, Para MS, a economia nunca se confundiu com o mercado. Este último só seria válido na condição de instrumento de uma economia ao serviço da sociedade. Várias vezes, MS se exprimiu – de uma forma que me parece evocativa da teoria crítica de Karl Polanyi na sua obra de 1944 (A Grande Transformação) – contra a actual inversão de valores, efectuada pelo capitalismo ultraliberal, da correcta hierarquia que deveria subordinar o mercado ao serviço da sociedade e das pessoas, e não o seu contrário.
Uma economista capaz de ousar o pensamento, como sempre o foi MS, é claro que se indignou contra o primado cada vez maior da “gestão” sobre a verdadeira episteme económica, no que é talvez um dos maiores sinais do empobrecimento da própria ideia de universidade. A elevação à categoria de “ciência” de uma actividade mecânica de puro desempenho, na maioria dos casos cega a valores éticos e hábil em contornar as próprias normas de direito, ajuda a explicar por que ainda hoje os economistas, efectivamente capazes de incorporar o significado da crise ambiental e climática na sua actividade, são uma minoria.
Por uma daquelas coincidências que não têm explicação, a notícia do falecimento de Manuela Silva chegou-me ao mesmo tempo que folheava a última edição da revista Itinerarium, editada pelos Franciscanos de Portugal, e dedicada à evocação dos 800 anos da presença dessa notável Ordem em Portugal. Com uma mistura de alegria e tristeza, deparei com os nossos dois contributos para esse número, publicados em sequência. Ambos escrevemos sobre as leituras e implicações da extraordinária encíclica Laudato si, do Papa Francisco. Manuela Silva assinava o artigo, fazendo referência à Rede ecuménica “Cuidar da Casa Comum”, que me parece ter sido a aposta cívica mais intensa dos seus derradeiros anos: combater a “economia que mata”, afirmar o princípio da vida na luta contra essa face brutal do niilismo institucionalizado que se traduz na catástrofe em aceleração da crise ambiental, social e climática global.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 23 de Outubro de 2019, p. 34.