O regresso da guerra à Europa revela, na sua trágica e expansiva brutalidade, como os dois mitos em que se fundaram as teorias modernas da política continuam válidos: a autopreservação e a vontade de poder. Thomas Hobbes (1588-1679) foi o pensador que mais sistemática e profundamente os definiu, tanto individualmente como na sua relação mútua, nos seus clássicos tratados sobre a origem da cidadania e do Estado, escritos durante a guerra civil inglesa e no final da Guerra dos 30 Anos. Hobbes preferiu sempre analisar comportamentos, sem cair numa visão essencialista da “natureza humana”. Segundo ele, o estado inicial das sociedades nada tem de idílico. A vida em comum nasce mergulhada numa espécie de caos social originário caracterizado pela “guerra de todos contra todos”, onde a ameaça de morte violenta é permanente. A existência nesse brutal estado combina uma liberdade irrestrita com uma incerteza e angústia sem pausa, resultantes da ausência de leis comuns e de autoridade política. O mito da autopreservação constitui a verdadeira causa motriz da passagem para o “estado civil”. O contrato social, estabelecido entre todos aqueles que abraçam a segurança em detrimento da liberdade irrestrita, cria a autoridade política e as leis civis. É esse “deus mortal”, como Hobbes chama a essa autoridade, que garante a segurança dos corpos e o reconhecimento legal da propriedade, em troca da renúncia total ao uso da violência individual.
O mito da vontade de poder, bem anterior à sua abordagem por Nieztsche, corresponde ao direito do mais forte, a paixão dominante entre os humanos antes da existência de uma autoridade política. Aparentemente, com o contrato social a autopreservação submeteria a vontade de poder ao seu domínio, inaugurando-se a supremacia da paz sobre o conflito. Contudo, isso seria demasiado fácil para ser verdadeiro. O impulso transgressivo da vontade de poder é descrito assim por Hobbes: “uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpétuo e incansável desejo de poder e mais poder, que cessa apenas na morte.” Para Hobbes, a luta entre vontade de viver e vontade de poder está permanentemente em aberto. Se na ordem doméstica, o próprio contrato social pode ser rompido pela turbulência da guerra civil, deixando cada um entregue a si próprio, no plano das relações internacionais a vontade de poder é a regra que prevalece sempre, mesmo nos longos períodos de paz. A possibilidade de agressão não depende de uma lei internacional desprovida do poder de coação, mas apenas de uma avaliação do seu custo-benefício, o que implica saber calcular com rigor as relações de força entre potenciais inimigos.
O facto de a invasão russa parecer cada vez mais um erro de cálculo, não a impede de ter a indómita marca da vontade de poder. E isso é confirmado também pela mudança de objetivo do crescente envolvimento da OTAN. Ele parece ter passado da defesa do povo ucraniano, para a meta ambiciosa de querer derrotar, ou pelo menos fazer sangrar ao máximo a Rússia. O problema com isso reside numa dupla omissão: o incalculável preço em sofrimento e destruição material que o povo ucraniano terá de pagar por esse novo objetivo; o esquecimento de que num conflito entre potências atómicas, querer perseguir a vitória é arriscar acender o rastilho da destruição mútua assegurada. Se deixarmos que a embriaguez da vontade de poder prevaleça sobre a autopreservação, não teremos uma segunda oportunidade para emendar o erro.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 7 de Maio de 2022