LISBOA EM TEMPOS DE INCERTEZA (II) CINCO TESES SOBRE O FUTURO

Esta crónica conclui a reflexão iniciada no número anterior sobre o passado e o futuro de Lisboa, retomando um contributo do autor para o Catálogo da Exposição Futuros de Lisboa, que esteve patente no Museu de Lisboa-Torreão Poente, de Julho a Novembro de 2018.

1. Onde está a salvação está também o problema. A urbanização do mundo tem sido um factor decisivo para novas oportunidades de trabalho, de educação e cultura para milhões de seres humanos que, sem isso, permaneceriam num estatuto de pobreza e privação. Contudo, o motor da urbanização, isto é o uso explosivo de combustíveis fósseis e a acentuada depleção de recursos naturais a uma escala cada vez mais planetária, é também a causa da crise global do ambiente, incluindo as alterações climáticas, que projectam uma ameaça catastrófica de dimensão absolutamente incomparável sobre a viabilidade do nosso futuro comum. Nenhuma cidade poderá resolver isoladamente o problema da transição energética e da sustentabilidade global. Contudo, nenhuma cidade pode deixar de responder positivamente ao desafio de concorrer para o gigantesco e incerto esforço dessa transição. É a segurança e salvaguarda da vida e da propriedade dos seus cidadãos que, desde logo, transforma essa luta de ambição global num desafio que deve estar nas prioridades cimeiras das agendas políticas municipais.

2. Pessimismo da inteligência com optimismo da vontade. Pensar o governo de uma grande cidade como Lisboa, num horizonte estratégico, convida a vencer todas as ilusões geradas por séculos de crescimento exponencial, que criaram inércias de irresponsabilidade organizada. Os gestores urbanos mais avisados são aqueles que seguem um antigo conselho de Antonio Gramsci: se queremos o melhor futuro possível para as nossas cidades teremos sempre de nos preparar para o pior cenário oferecido pelo conhecimento disponível. Uma gestão urbana inteligente deve estar preparada para aplicar uma taxa de desconto em todos os estudos prospectivos, sejam eles provenientes do meio académico, ou dos institutos ligados ao risco e/ou do planeamento estratégico. Os estudos das alterações climáticas servem de útil ilustração para Lisboa. Ao longo dos cinco relatórios já publicados, descontando um número pequeno de erros grosseiros, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa) tem pecado sempre por defeito. Em particular na estimativa do tempo provável de deterioração do equilíbrio da criosfera, um dado vital para cidades costeiras como Lisboa, pois o comportamento da criosfera será decisivo para a velocidade e a intensidade da subida do nível médio do mar (NMM).

3. Vencer a religião laica da superstição tecnológica. Um dos maiores erros que pode afectar o sucesso do desenho e da execução prática de uma estratégia urbana sustentável e resiliente de longo prazo é a crença ingénua na tecnologia. Se queremos evitar o pior para as nossas cidades, precisamos de ultrapassar uma confiança cega e ideológica na tecnologia. Nenhuma cidade sobreviverá aos desafios da crise ambiental e climática apenas com novas aplicações informáticas, ou mesmo com a simples massificação de fontes renováveis de energia. A inovação tecnológica não vence sozinha a poderosa inércia dos interesses instalados. Ela só poderá ter sucesso se resultar de um forte e permanente investimento na educação ética e formação jurídica dos cidadãos, na melhoria das instituições e no fomento de uma cultura política da participação cívica e da solidariedade global. A idolatria da tecnologia, como ocorre com as propostas exorbitantes da geo-engenharia e do trans-humanismo, ou resulta da erosão psicológica e moral associada os grandes desafios contemporâneos, ou corresponde à inércia sinistras daqueles que consideram a crise ambiental como uma nova oportunidade para alargar a esfera das transacções, através da criação de um capitalismo de segunda geração destinado a remediar as catástrofes criadas pelo capitalismo de primeira geração.

4. Não esquecer o paradoxo de 1945. Aqueles que apostam tudo na tecnologia deveriam lembrar-se do paradoxo tecnológico da II Guerra Mundial. As melhores armas desenvolvidas entre 1939 e 1945, com a excepção da bomba atómica, foram produzidas pela Alemanha. Os melhores submarinos, os melhores carros de combate (como o Tiger e o Panther), os primeiros aviões a jacto (Heinkel He 178), os primeiros equipamentos de visão nocturna, os primeiros mísseis de cruzeiro (V1), os primeiros mísseis balísticos (V2). Contudo, e apesar das suas pioneiras “armas secretas”, a Alemanha perdeu a guerra. Os erros políticos e estratégicos na condução da guerra, multiplicando as frentes, subestimando os inimigos e sobrestimando as forças próprias, esmagaram os ganhos da superioridade tecnológica e do talento militar, esgotaram o espaço de manobra que é uma condição indispensável para a vitória. As cidades e a civilização contemporânea carecem hoje não de espaço mas de tempo. A política mundial deveria ser hoje dominada por um esforço concertado de cooperação compulsória, entre Estados, cidades, empresas e outros actores políticos, sociais e culturais para dilatar o tempo necessário para tomar as medidas de mitigação e de adaptação aos riscos e ameaças globais de que depende o curso do futuro da humanidade em geral, e das cidades em particular.

5. As três chaves do futuro. O futuro da humanidade sempre foi incerto, contudo, essa incerteza é hoje maiúscula, pois, pela primeira vez na história da nossa espécie estamos unidos pelas mesmas esperanças, mas, sobretudo, pelos mesmos perigos. Nesse sentido, navegamos por mares não completamente cartografados, apesar de tudo o que já hoje se pode antecipar, sobretudo na vertente dos riscos e das ameaças. A boa governação das cidades deve integrar no seu processo de tomada de decisão estratégica as três chaves de que depende o futuro, a saber: a integração o mais exaustiva possível de todo o conhecimento fundado em informação credível; a identificação das zonas de sombra e de ignorância, de onde podem despontar alterações objectivas, não necessariamente de sinal negativo; e finalmente, a mobilização de todas as instituições, talentos e capacidades individuais e colectivas no plano da acção prática concreta, que é a única vertente inteiramente dependente da nossa vontade e resolução políticas.

As cidades devem, deste modo, estar abertas ao que é possível conhecer, estar preparadas para as surpresas do desconhecido, e organizadas para realizar na prática tudo aquilo que pode e deve ser levado a efeito.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 10 de Abril de 2019, página 33.

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