LIMITES DO FUTURO POSSÍVEL

A anunciada Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030, da autoria de António Costa Silva (ACS), está já disponível. Apesar de censurável, a ideia do PM de pedir a um só autor uma obra desta envergadura – levando para o desenho das políticas públicas a síndrome lusa do sebastianismo –, a verdade é que o Plano, tanto na sua força como na sua fragilidade, é um oásis de relevância no deserto de trivialidades da política nacional. Reflectindo a experiência profissional de ACS, o Plano olha o país como um estaleiro de obras. Actuais e possíveis. Mobilizando um vasto cabedal de informação, o Plano traça cenários e desígnios ambiciosos, para fazer da crise pandémica uma oportunidade que não pode ser perdida. Ressalta em cada página, um dinamismo de demiurgo e um optimismo prometeico invencível.

O olhar do Plano é profundamente coeso e coerente, por vezes demasiado, correndo o risco ideológico de desprezar os alertas finos do real. A ideologia do Plano é a da salvação pela tecnologia, fundada na fé na inesgotabilidade do engenho humano. Por isso, não causa espanto que embora refira a necessidade de um modelo de “agricultura sustentável” evite falar no olival intensivo. Mostra preocupação com os “incêndios rurais”, mas passa ao lado das desordenadas monoculturas de eucalipto e pinheiro bravo onde as ignições tragicamente se agigantam. Escreve sobre alterações climáticas, mas propõe o incremento exponencial das indústrias extractivas, incluindo arrancar crostas de níquel, cobalto e manganês aos fundos marinhos dos Açores. Fala de Forças Armadas, sobretudo na dimensão externa, mas não considera a necessidade de as preparar para os desafios internos de segurança implicados pela emergência ambiental e climática.

O autor interroga-se: “Como é que o futuro vai evoluir? Não sabemos.” Trata-se de uma humildade tão retórica como a dúvida cartesiana. Essa humildade metódica, abundando em cenários e propostas, muitas delas acertadas, parece-me falhar, contudo, no essencial. Subestima ou silencia, o que de fundamental já verdadeiramente se conhece. Descarta a possibilidade da persistência desta crise pandémica, em vez de nos trazer o ouro da solidariedade, poder fracturar ainda mais uma UE que se arrasta penosamente. Sabemos também que a crise ambiental e climática global já entrou numa fase de não-retorno, que nos vai obrigar a contrair, reduzir e adaptar para sobreviver. Contudo, o Plano, no seu estilo vertiginoso, procura a quadratura do círculo: conciliar a exuberância energética e disruptiva do crescimento com a prudência da sustentabilidade. Ele contempla o desafio das crises ciclópicas do presente-futuro, como se o tempo que vai ditar as regras fosse o do ‘plano de negócios’ da transição energética, e não o da emergência humanitária e securitária. Também nas suas limitações de fundo, o Plano de ACS ajuda-nos a perceber a nossa estreita margem de manobra. Só teremos lugar no futuro se transformarmos a defesa da Terra no centro do contrato social. O resto são fantasias vãs.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 18 de Julho de 2020, página 20.

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Paulo Rodrigues

Há uma variável que está a passar-nos a todos ao lado: a incógnita sobre a ascensão ao poder dos populismos, quase sempre a esconder a face hedionda do fascismo.
Na Inglaterra, a rejeição popular à UE, deu uma confortável maioria a um vulgar oportunista.
O modelo brexit será replicado em outros países, com toda a certeza.
Não está em questão, neste comentário, se o brexit é bom ou mau: estou apenas a considerar que o brexit foi o veículo usado para chegar ao poder.