KURT EISNER, A INJUSTIÇA DE UM ESQUECIMENTO

Há muitos anos que considero ser a Alemanha o único país da UE que tem uma política pública de memória séria em relação aos aspectos mais sinistros do seu passado. Em Berlim, para além de tudo o que já existia, é possível visitar num Bunker musealizado a exposição: “Hitler- Como foi Possível”. Em Munique, na cidade que o partido nazi considerava como a sua “capital”, existe um excelente Centro de Documentação sobre o Nazismo, de grande valor educativo. Contudo, as recentes eleições estaduais nos Estados da Saxónia e de Brandeburgo, em que os neonazis da AfD obtiveram, respectivamente, 27,5% e 23,5% dos votos, mostram que alguma coisa está a falhar. É verdade que no plano federal, o sucesso da AfD é bem mais modesto, e que uma parte desse sombrio êxito se liga à herança anterior a 1989, contudo, importa ir mais fundo.

O nacionalismo, como escreveu Nietzsche, mais do que uma ideologia é uma doença. Essa doença, depois de a destruir duas vezes, transformou a Europa na irrelevância política em que hoje se encontra, e continua a fazer estragos. Por isso, interrogo-me se na época de irracionalidade iconográfica em que vivemos a multiplicação excessiva de exposições sobre Hitler não correrá o risco de ajudar a fazer crescer as sementes venenosas que ele deixou como herança? Talvez a melhor forma de combater o nazismo seja pela positiva. Resgatando do esquecimento as suas vítimas mais notáveis, recuperando as suas visões de Alemanha e de Europa. A história mostra que o poder do Estado confere uma falsa grandeza ao mais maligno dos homens. Hitler é um exemplo evidente, mas não está sozinho. Basta olhar à nossa volta. Contra isso, Munique faria bem em não esquecer uma figura única na história alemã, dotada de luz própria: Kurt Eisner (1867-1919). Judeu berlinense, pensador, jornalista, crítico de teatro, socialista independente. Eisner foi, segundo Sebastian Haffner, profundo conhecedor da revolução alemã de 1918-19, o solitário “chefe” da implantação da República da Baviera (2 dias antes da sua proclamação em Berlim). Sem disparar um tiro ou derramar sangue, sem aparelho partidário, apenas pela força da sua coragem e do seu carisma (Max Weber escreveu sobre ele) instituiu um governo que deu direito de voto às mulheres e promoveu eleições para uma Assembleia Constituinte. Acreditava que os conselhos, representando as classes trabalhadoras, deveriam partilhar constitucionalmente o poder com o parlamento eleito por voto universal. Queria socialismo com democracia, incluindo a representativa, e sem expropriação selvagem. Em 21 de Fevereiro de 1919 foi assassinado pelas costas por um proto-nazi, quando ia apresentar a sua demissão do governo perante o novo parlamento, pois tinha perdido as eleições que convocara… O silêncio que impera 100 anos depois da sua morte faz suspeitar que – mesmo para a excelente política alemã de memória -a recordação da existência em 1919 de uma alternativa à dicotomia entre a ditadura do proletariado e a sangrenta aliança entre o SPD e os generais do Kaiser possa constituir um problema.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, 14 de Setembro de 2019, p. 35.

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H. Nunes

Muito interessante. Obrigado