GEOENGENHARIA E CAPITALISMO DE CATÁSTROFE

A reserva face às manifestações dessa nova religião de baixa intensidade epistémica (baseada mais na convicção do que no conhecimento) – que é o optimismo tecnológico incondicional ou a tecnofilia extrema – torna-se particularmente evidente quando a colocamos perante um perigo existencial e ontológico, que, apesar da sua magnitude ter sido identificada há mais de um século por Svante Arrhenius (1896), e não ter parado de crescer, como se fosse um asteróide em rota de colisão com a Terra, tem sido negado, vilipendiado, ou subestimado com indiferença mais ou menos silenciosa, em particular por lideranças políticas e empresariais. Estou a referir-me ao mega processo das alterações climáticas, que parece ter entrado numa fase de aceleração exponencial.

As consequências das alterações climáticas já são um fenómeno iniludível, que se traduz em perdas humanas e materiais imensas que afectam milhões de pessoas em todo o mundo. Os fenómenos extremos, ciclones, inundações, incêndios florestais apocalípticos, perdas de produção agrícola como aquela que ocorreu na Rússia em 2010 causando uma carestia geral no preço dos alimentos, que induziu no mundo árabe uma convulsão gigantesca, tudo isso constitui apenas um preâmbulo do caos e desordem que se instalará quando a subida da temperatura média ultrapassar os 2º C relativamente ao período pré-industrial e o nível médio do mar (NMM) obrigar a êxodos maciços nas cidades e zonas costeiras em todos os continentes.

Com o desplante típico de quem vive impregnado pelo princípio de dominação, as elites do dinheiro e da tecnociência não se importam de abrir uma nova época: a do capitalismo de catástrofe. As soluções tecnológicas propostas para mitigar uma desregulação dos ciclos biofísicos vitais do planeta, em vez de apostarem numa tecnologia que permita a redução das causas (emissões de gases com efeito de estufa), pretendem adicionar, através da geoengenharia, mais tecnologia intrusiva e de consequências imprevisíveis. Os mesmos promotores de uma engenharia extractivista e poluidora, que causou a doença, querem agora curá-la através de uma grotesca e rudimentar manipulação da atmosfera e da hidrosfera, Com efeito, as duas principais propostas de geoengenharia, na sua grosseira expressão, seriam risíveis se a situação do planeta não fosse angustiante. Na atmosfera, pretende-se bombardear a estratosfera com aerossóis de dióxido de enxofre, ou de carbonato de cálcio, para diminuir a radiação térmica que atinge a Terra. Na hidrosfera, visa-se aumentar a alcalinidade dos oceanos dispersando milhões de toneladas de partículas minerais para incrementar a capacidade dos mares absorverem, ainda mais, dióxido de carbono.

As propostas de geoengenharia revelam bem o estado desesperado a que chegámos, e transforma em insulto o milenarismo tecnológico de alguns dos mais salientes cultores do novo triângulo mágico, da IA, das biotecnologias e das nanotecnologias. Aqueles que apostam tudo na tecnologia deveriam lembrar-se do paradoxo tecnológico da II Guerra Mundial. As melhores armas desenvolvidas entre 1939 e 1945, com a excepção da bomba atómica, foram produzidas pela Alemanha nazi. Os melhores submarinos, os melhores carros de combate (como o Tiger e o Panther), os primeiros aviões a jato (Heinkel He 178), os primeiros equipamentos de visão nocturna, os primeiros mísseis de cruzeiro (V1), os primeiros mísseis balísticos (V2)… Contudo, e apesar das suas pioneiras “armas secretas”, a Alemanha perdeu a guerra. Os erros políticos e estratégicos na condução da guerra, multiplicando as frentes, subestimando os inimigos e sobrestimando as forças próprias, esmagaram os ganhos da superioridade tecnológica e do talento militar, esgotaram o espaço de manobra que é uma condição indispensável para a vitória. De modo análogo é difícil manter um elevado teor de autocomprazimento e um sorriso rasgado face ao futuro quando o número de excluídos, não apenas das tecnologias de ponta, mas do pão mais humilde e do abrigo mais modesto, se acumulam junto aos muros farpados da Europa e da América do Norte.

Aquilo que hoje o milenarismo das novas tecnologias esquece, tal como os arautos das “armas secretas” que prometiam salvar o nazismo esqueceram em 1945, é que o tempo é o bem mais escasso, e que as prioridades da inovação tecnológica estão a ser desperdiçadas porque os mercados não são dotados nem de espírito filantrópico nem de uma visão estratégica do interesse comum. Os mercados, sem os quais não existe implementação das tecnologias, trabalham para o maior retorno possível dos investimentos. Os mercados trabalham para satisfazer os desejos dos clientes que pagam (veja-se o imenso volume de investimento no desenvolvimento de fúteis jogos de computador) e não para responder às necessidades existenciais de que depende o nosso futuro comum.

Se quisermos ganhar o tempo que cada vez mais escasseia para viabilizar um futuro digno, temos de começar desde já a fazer as escolhas políticas justas e as decisões moralmente válidas. O futuro não está fechado, por isso mesmo os estudos prospectivos, longe de serem estórias de adormecer, devem ajudar-nos a separar o possível realista da mera fantasia irrealizável. Não me parece que a sobrevivência pura e simples da humanidade esteja em causa, contudo, está em risco a continuidade de uma civilização complexa e sofisticada, capaz de distribuir a justiça e minorar o sofrimento. Para evitar o pior, precisamos de começar por ultrapassar a nossa confiança cega na tecnologia. Não existem aplicações que substituam o investirmos na educação ética dos cidadãos, na melhoria das instituições e no fomento de uma cultura política da participação cívica e da solidariedade global.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 16 de Janeiro de 2019, p. 33.

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