FALAR EM LISBOA AOS JOVENS DO MUNDO

Sobre o Papa Francisco poderemos dizer algo de parecido ao que a filósofa Hannah Arendt escutou a uma criada romana sobre João XXIII, por ocasião da sua morte em 3 de junho de 1963: “Minha senhora, este papa era um verdadeiro cristão. Como é que isso foi possível? Como pôde um verdadeiro cristão sentar-se no trono de S. Pedro? Pois não teve primeiro que ser nomeado bispo, e arcebispo, e cardeal, para finalmente ser eleito papa? Ninguém se terá apercebido de quem ele era?” (Arendt, H., Homens em Tempos Difíceis, Relógio D’Água, tradução de Ana Luísa Faria, 1991, p. 73). Herdeiro da profunda renovação operada por João XXIII na vida interna da Igreja Católica, e na relação desta com o mundo, o Papa Francisco conseguiu, entre outros feitos, transportar para a sociedade comunicacional e digital contemporânea, as características humanas de simplicidade e humildade que definiam o iniciador do Concílio Vaticano II. Perceber a doutrina defendida por Francisco em Lisboa implica a leitura articulada da dezena de discursos aí proferidos. Mais densos, no glosar dos seus temas fundamentais, os que preferiu perante políticos e diplomatas (um merecido puxão de orelhas à apatia de uma UE, irreconhecível se comparada com a grandeza projetada pelos “pais-fundadores”), ou perante estudantes universitários (sublinhando a gravidade da “destruição ecológica”, que exige rigor de pensar e ação, já que” as meias-tintas são apenas um pequeno adiamento do colapso”). Deliberadamente mais leves e metafóricas, as alocuções desenhadas para as grandes assembleias de jovens. O próprio Papa confessava aos jornalistas, no regresso a Roma, admitir que a atenção dos jovens não duraria mais de “oito minutos”.

Falar para mais de um milhão de jovens, como se estivesse junto de cada um deles, deixando a inspiração de duas ou três ideias essenciais (a alegria do cuidado, ou a aceitação do insucesso como oportunidade de amadurecimento) é uma caraterística reveladora da rica unidade da experiência de Francisco como teólogo, mas também chefe político da Igreja, forjado num período tão difícil e num país tão exigente como o foi (e é) a Argentina. As complexas relações da cidade de Deus e da cidade dos Homens constitui um tema vivido com singular delicadeza no catolicismo, comparativamente a todas os outros ramos do cristianismo. A Igreja de Pedro não só se confundiu com o maior império que o Ocidente criou, como permitiu salvaguardar, contra a destruição e o esquecimento, parte substantiva do legado cultural romano. Quando Francisco fala aos jovens do futuro e da alegria na sua construção partilhada, há esse travo teológico-político, de um apelo a uma mobilização e a um empenho cuja efetividade implica uma ligação a instituições que se movem nos antípodas dos valores da caridade e da solidariedade. Talvez por isso, tivesse ficado em falta nas palavras do Papa em Lisboa, usar alguns desses oito minutos para encorajar os jovens – membros das primeiras gerações da história humana a ter como futuro a habitação de um planeta em acelerada e programada degradação – a juntar ao cultivo do amor e da solidariedade, o exercício de uma vigilância redobrada contra a poderosa aliança entre o mal e a pulsão de morte que domina a (des) ordem económica e política global. Se o inegável sucesso organizativo da JMJ não for temperado pelo acicate da responsabilidade perante os obstáculos tremendos que todos teremos de enfrentar, então algumas das sementes lançadas poderão não frutificar.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 12 de agosto de 2023, página 9.

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