Pensava abster-me na “discussão”, com mais ruído do que substância, em torno do chamado “Museu Salazar”. Com a ironia própria do real, essa força, segundo Ortega, ilógica para a nossa mente, acabei por decidir entrar na liça. O bizarro motivo para tal foi a divulgação pelos EUA de algumas actas secretas da Conferência de Potsdam. Ao ler os materiais relativos a 19 de Julho de 1945, deparei com uma interessante discussão entre o demissionário Churchill (sairia de cena a 26 desse mês) e Estaline. Este queria que os Aliados dessem uma ajuda à mudança de regime em Espanha. Para ele, Franco só se tinha imposto devido ao apoio militar de Hitler e Mussolini. Churchill estava contra, dizendo que, nesse caso, também o regime de Salazar teria de ser posto em causa. A resposta de Estaline é surpreendente: “O regime de Portugal surgiu a partir de forças internas, o de Espanha de forças externas. Eu não coloco no mesmo plano Espanha e Portugal.” Com incredulidade, aceitei a deixa que um dos mais terríveis terroristas de Estado de sempre me oferecia para abordar o tema do dia. Muitos dos críticos do Estado Novo partem de um fatal erro metodológico. Em vez de tentar compreender esse regime e o seu longevo líder a partir de dentro da história de Portugal, fazem um exercício emocional de externalização, que é intelectualmente de uma preguiça inaceitável. Colocam Salazar no mesmo plano de Hitler e Mussolini, e recusam-se até a classificar o Estado Novo como II República. Na minha leitura, pelo contrário, o Estado Novo e o seu chefe prolongaram três problemas nacionais que só foram resolvidos com o 25 de Abril e a III República, a saber: a superação da violência política; a consolidação da democracia representativa; e o fim do ciclo imperial. A I República impôs-se violentamente e nunca conseguiu livrar o país de uma guerra civil de baixa intensidade, que os 200 mortos (muitos deles fuzilados contra a parede) e mil feridos do derrube do governo de Pimenta de Castro em 1915, tristemente ilustram. Salazar não acabou com a violência, mas concentrou-a nos órgãos de polícia e reprimiu a sua difusão, reactivando a vetusta gestão inquisitorial do medo. De igual modo, Salazar, tal como a I República, desconfiava do regime representativo (a monarquia constitucional não protegeu D. Carlos I de ser assassinado…). O regime corporativo tem raízes ideológicas nacionais, não só no catolicismo conservador e no Integralismo monárquico, mas, como escreveu António José Saraiva, nas meditações de 1878 de Oliveira Martins sobre “democracia orgânica”, e noutras ideias da “tertúlia ocidental”. Finalmente, a guerra colonial encarniçada de Salazar replicou o fanatismo dos “guerristas” de Afonso Costa, que atolaram o CEP na Flandres para salvar as colónias africanas. Quando um país se recusa a rever-se nas sombras da sua história, e atribui causalidade externa ao que dolorosamente lhe pertence, isso significa que não há ainda nem distância nem maturidade para um exercício museológico.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição do Diário de Notícias de 21 de Setembro 2019, p. 32