Os peritos militares que durante a guerra-fria aconselharam os governos, olhariam para o que está a suceder com a atual guerra na Ucrânia com incredulidade. A razão por que nunca os EUA e a URSS, mais a multidão dos Estados seus dependentes, chegaram a um conflito direto foi a convicção, partilhada em Moscovo e Washington, de que uma guerra central dificilmente poderia ser controlada. A escalada, isto é, a subida de intensidade no conflito acabaria por conduzir ao colapso infernal de uma destruição mútua assegurada com o uso generalizado de armas atómicas. Uma forma de homenagear a memória de Gorbachev será a de recordar que um dos seus méritos foi o de ter recusado a perigosa ilusão de que seria possível travar uma guerra nuclear limitada à Europa central (afetando “apenas” a RFA, a RDA, a Checoslováquia e a Polónia). Na verdade, até ao quebrar do gelo entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia pelas iniciativas de paz de Gorbachev, estavam vigentes, tanto a Ocidente como a Leste, doutrinas militares ofensivas que previam o eventual uso de armas nucleares táticas no próprio campo de batalha. O general Bernard W. Rogers, SACEUR da OTAN, defendia o conceito do “ataque profundo” (strike deep), dando o seu nome àquela que ficou conhecida também como a doutrina da Air-Land Battle. No lado soviético, a réplica foi dada pela doutrina dos Grupos Operacionais de Manobra, do marechal Nicolai Ogarkov, cuja insistência no reforço do orçamento militar soviético levaria ao seu afastamento, em 1984, mesmo antes da chegada de Gorbachev.
O que transforma a atual guerra na Ucrânia num escândalo global de segurança reside no facto de nela estarem envolvidas 4 das 5 maiores potências atómicas do planeta. A importante vitória militar ucraniana em Kharkiv, que tornou visíveis e audíveis mesmo dentro da Rússia as críticas à condução da guerra por parte de Putin, torna mais urgente a pergunta que deveria ser colocada em todos os centros de decisão política dos países envolvidos. Quais os objetivos e quais os limites da ação militar? O Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, afirmou querer enfraquecer a Rússia. Kiev fala mesmo de “vitória”, tendo solicitado aos EUA armas capazes de projetar mísseis a 300 Km, bem dentro do território russo. Uma escalada bélica levará a cenários progressivamente mais horríveis. O primeiro já é visível, a destruição das infraestruturas de energia, transportes e comunicações ucranianas (fazendo lembrar a ofensiva aérea da OTAN contra a Sérvia em 1999), aumentando também o sofrimento das populações civis. Mas mesmo que a sorte das armas continuasse a sorrir a Kiev e aliados, no limite, a possibilidade de perder a Crimeia, a base naval de Sebastopol e o acesso ao Mar Negro seriam considerados como uma “ameaça existencial” para a Rússia – com Putin ou sem Putin – podendo levar ao uso de armas nucleares táticas contra as forças ucranianas. Caberia, então, à OTAN a existencial decisão política de levar, ou não, o seu apoio à Ucrânia, apesar do país não estar coberto legalmente pelo artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, ao ponto de envolver diretamente as tropas e os povos da Aliança numa guerra que, rapidamente, se tornaria nuclear e de extermínio. Nesta dança macabra, o encarniçamento belicista, em ambos os campos, é uma ameaça sobre o futuro coletivo, bem para lá do atual teatro bélico. O que sobra de racionalidade política tem de impor um limite à guerra, sob pena desta devorar tudo à sua volta.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição de 17 de setembro de 2022 do Diário de Notícias, p. 11.