DOS LIMITES DA TECNOLOGIA

Encontrei o conceito de “tecto de complexidade” (complexity ceiling) num texto de 2002. O seu autor, Jaron Lanier (1960), é um dos pais fundadores da “realidade virtual”. Ele junta o génio criativo, que o tornou numa referência mundial do mundo digital, a um agudo espírito crítico, traduzido na publicação em 2018 de um poderoso manifesto contra a devastação psicológica e moral a que ficamos expostos pela simples (que nunca o é…) pertença a redes sociais. No contexto original em que esse conceito foi empregue, Jaron Lanier chamava a atenção para os limites do progresso tecnológico. Embora ele se concentrasse mais nas tecnologias digitais, a verdade é que os tectos de complexidade podem estender-se a todos os domínios da realidade, e das ciências e técnicas que a eles se dedicam e aplicam.

Na verdade, o entusiasmo tecnológico transformou-se não só numa ideologia (o technological fix, segundo a qual todos os problemas têm uma solução tecnológica, incluindo aqueles que são provocados pela tecnologia…), mas sobretudo numa espécie de pensamento mágico secularizado, que visa substituir a natural angústia das mentes saudáveis perante o conturbado espectáculo das complicações do mundo contemporâneo, por uma cega e acrítica confiança na capacidade, dita ilimitada, do engenho humano. O problema é que essa ideologia, ainda mais do que muitas outras, está profundamente errada. A sua difusão tem sido uma das causas do modo passivo como nos temos acomodado ao avolumar das ameaças globais, mantendo uma bonomia desarmante. Será que faríamos o mesmo se soubéssemos que um grande asteróide se encontrava em rota de colisão com a Terra?

Um dos flagrantes exemplos da abissal diferença dos “tectos de complexidade” é aquele que separa o transporte de informação, através das tecnologias de informação e comunicação (TIC), relativamente às tecnologias de transporte físico de pessoas e mercadorias a longas distâncias. Enquanto as primeiras têm registado um aumento exponencial no seu desempenho (não isento dos riscos da nossa crescente dependência de híper-sistemas, altamente vulneráveis ao cibercrime), as segundas têm tido, comparativamente, um progresso mais do que modesto. Na verdade, em matéria de transporte pessoal, continuamos muito próximos da tecnologia que foi posta à prova pela primeira vez em 5 de Agosto de 1888, quando Bertha Benz, por iniciativa própria e com os seus dois filhos adolescentes, fez a primeira viagem de automóvel de longo curso, entre duas cidades alemãs (106 Km).

Para todos os futuristas da tecnologia, incluindo os visionários de um futuro pós-humano, a actual crise energética dá-nos uma lição de humildade. Mesmo descontando o obstáculo ignóbil daqueles que têm bloqueado a inovação para manter os seus negócios, a verdade é que continuamos a depender da energia libertada pelo sol há centenas de milhões de anos, capturada sob a forma de combustíveis fósseis, os mesmos que estão a aumentar vertiginosamente a temperatura do planeta, arriscando torná-lo inabitável em muitas regiões. Se não quisermos sufocar no paradoxo em que, por incúria, nos deixámos aprisionar, precisaremos de aceitar que não basta mudar o modo como fazemos as coisas. Importará mudar também aquilo que fazemos, o estilo de vida, de produção e consumo. Nenhuma tecnologia nos libertará de escolhas éticas difíceis e de decisões políticas dolorosas. Também aqui teremos de enfrentar o tortuoso tecto de complexidade da irresponsabilidade humana.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 18 de Dezembro de 2021, página 12

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