Direitos humanos em tempos de incerteza: três teses para uma promessa por cumprir

Setenta anos após a exata data da sua aprovação formal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas parece estar mais perto dos tempos de angústia que lhe deram origem, num mundo devastado pela guerra e pelos particularismos virulentos, do que do projeto de sociedade internacional justa, onde cada mulher e cada homem se deveriam assumir como “cidadãos do mundo”, para usar um conceito retirado do último discurso de tomada de posse de Franklin Delano Roosevelt, a 20 de janeiro de 1945. São os riscos e as ameaças deste tempos de crise global que exigem de todos uma reflexão, comprometida mas livre, com estas palavras gravadas no granito, que constituem uma das últimas linhas de defesa contra o regresso da barbárie.

O que se poderá ainda dizer sobre os direitos humanos numa altura em que as leis do mundo político se inclinam cada vez mais para o peso das coisas que têm um preço de mercado, e cada vez menos para aquilo que tem valor e é fonte de valor, fora da estrita esfera das transações? Nas relações internacionais, longe vai o tempo da diplomacia exigente, em que os progressos em matéria de direitos humanos constituíam uma linha da frente da diplomacia europeia ou norte-americana.

Hoje, a lógica da vantagem económica pura e dura, a urgência no acesso a bens naturais estratégicos cada vez mais escassos, parece substituir todas as outras considerações. A entrada em 2014 de uma sangrenta ditadura africana para a CPLP reproduz, à nossa modesta escala, este feroz niilismo ativo que esmaga a própria memória dos direitos humanos. E que dizer da orgulhosa Europa, onde, na voragem da erroneamente denominada “crise das dívidas soberanas”, se espezinharam princípios sagrados como aquele que confere aos parlamentos nacionais eleitos pelos povos o poder exclusivo de aprovar os orçamentos. Como compreender o processo, absolutamente antidemocrático, de “aprovação”do Tratado Orçamental (entrou em vigor em 2013), que foi imposto aos povos da União Europeia, violando não só o Tratado de Lisboa mas usurpando as competências orçamentais dos parlamentos? Como será possível surpreendermo-nos com a intensidade das forças populistas e extremistas que ameaçam a Europa de desintegração?

Propomos ao leitor, justamente nesta hora de crise e perigos para os direitos humanos – sem exclusão de nenhum continente, como as lideranças de Trump, Duterte e Bolsonaro o demonstram – que nos acompanhe numa breve viagem em que procuramos recuperar apenas o que permanece essencial, a saber, a natureza inacabada e inacabável da fundamentação e consolidação dos direitos humanos, tanto a uma escala doméstica e constitucional como, por maioria de razão, no âmbito do sempre imperfeito direito internacional público. Esse âmbito essencial torna-se particularmente visível através da consideração das três teses que de seguida se enunciam.

1ª. tese: os direitos humanos são a expressão política do melhor da consciência ética da modernidade. A preocupação com os direitos humanos, não apenas com a sua enunciação formal, mas com o esforço para a sua integração no corpo do direito positivo, nomeadamente, no âmbito do direito constitucional dos diversos países não começou a 10 de dezembro de 1948, com a Declaração Universal das Nações Unidas. A ONU teve o mérito de retomar o fio de um novelo que havia ficado enrodilhado por mais de um século e meio.

A identificação de uma esfera de direitos humanos pessoais é património da cultura europeia. Essa identificação é contemporânea do grande esforço e da larguíssima constelação conceptual que designamos como a época e o movimento da modernidade.

Será sem dúvida uma das mais complexas ironias da história do pensamento verificarmos que a fonte matricial dos direitos humanos abrigou no seu interior a gestação do conceito moderno de Estado, precisamente essa nova entidade, também ela filha da modernidade, que seria, ao mesmo tempo, tanto a condição do gozo efetivo como o maior inimigo do respeito desses direitos.

Maquiavel, La Boétie, Jean Bodin, Althusius, entre outros, são pensadores, simultaneamente, do Estado moderno, mas também do cidadão moderno, com os seus direitos e deveres deduzidos numa lógica secular e racionalista.

Lutero, Calvino, Bartolomeu de las Casas, Francisco de Vitoria, entre outros, são pensadores da categoria de pessoa, em sentido metafísico e teológico, e nessa medida autores fundamentais para a compreensão do pendor universalista e abstrato do direito natural, essa bandeira comum das muitas escolas dos direitos da humanidade que até ao final do século XVIII fizeram ouvir a sua voz na Europa e nas Américas.

Uma palavra de destaque deve ser dada à Escola Ibérica da Paz, a esse punhado de intelectuais e missionários dominicanos, franciscanos e jesuítas que, com o risco da sua própria vida, defenderam os direitos humanos, incluindo o direito à propriedade e à organização política dos povos das Américas. Do seu magistério nas universidades de Portugal e de Espanha, bem como também nos institutos universitários do Novo Mundo, surgiu uma vasta obra que está atualmente a ser recuperada (traduzida do latim para português e castelhano, sob a direção de Pedro Calafate), e que é fundamental para perceber que foi na Península Ibérica, e não na Europa do Norte, que foram lançadas as raízes dos direitos humanos, tanto na perspetiva constitucional como na perspetiva do direito internacional público.

O século XVIII terminou assinalado por dois acontecimentos que modificariam completamente as expectativas, até aí otimistas e expansionistas dos direitos humanos:

– A Revolução Americana de 1776 que traiu o alcance emancipatório e libertador da sua Declaração fundadora com os sucessivos compromissos que fizeram conviver, até à Guerra Civil (1861-1865), a retórica da liberdade com o flagelo e a degradação da escravatura de base racial;

– A Revolução Francesa de 1789, que gorou as esperanças internacionalistas por ela suscitadas, primeiro pelo fanatismo do terror e depois pela meticulosa aventura imperial napoleónica.

Quando os vencedores de Napoleão I se reuniram em Viena, no ano de 1815, a ideia de direitos humanos estava associada a essa dupla desilusão. A fraternidade do género humano que elas upunha tombou no mais profundo descrédito. À esquerda e à direita os estandartes desfraldados eram outros. A fraternidade já não era internacional.O altar da pátria, da língua, do império e da tradição (a real, mas ainda mais a mitologicamente urdida) falava mais forte do que os direitos da humanidade.As revoluções já não se faziam para regenerar o género humano, mas para impor uma ditadura de classe.

Por outro lado, para o mundo colonizado pelos europeus do século XIX não houve direito a uma réplica das Juntas de Valladolid (1550-51), magnas reuniões de sábios e conselheiros régios e imperiais, em que os direitos individuais e coletivos dos povos ocupados pelos espanhóis tiveram direito a uma entusiástica defesa, por parte de Las Casas e seus discípulos, que se traduziu na suavização das leis das Índias, mesmo no final do reinado do imperador Carlos V. Na Conferência de Berlim, em1884-1885, pelo contrário, o destino dos povos africanos ficou traçado sem dó nem piedade, abrindo o caminho para ignóbeis genocídios, como aquele que foi praticado pelo Rei dos Belgas sobre os povos da bacia do Congo, durante décadas a fio.

A própria noção de um direito natural não escrito, mas superior fonte inspiradora da renovação de todas as leis escritas, foi catalogada no arquivo das ideias caducas. O positivismo e o historicismo jurídicos tornaram-se imperativos. O direito coincidia, agora, com as aspirações nacionais. A ponto da loucura e do pesadelo. Um dos exercícios intelectuais mais horríveis, ainda hoje, é a leitura dos diplomas jurídicos que o zeloso espírito germânico não se coibiu de elaborar para dar cobertura em letra de lei às visões dantescas de Hitler e do nacional-socialismo.

Sem Hitler não teria existido, porventura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Foi a sua visão do mundo, onde a humanidade nem como conceito zoológico existia, o pesadelo de opereta bufa, mas sangrenta, de arianos e sub-humanos, de senhores e escravos, de bestas de carga e de super-homens, de mulheres-parideiras e guerreiros louros, de campos de extermínio e jovens alegremente desfilando   primaveris, foi esse Carnaval trágico que comoveu a comunidade internacional, despertando-a para o facto de que os direitos humanos, como conceito-reitor da vida política, estavam adormecidos há 150 anos.

Os direitos humanos não eram irreversíveis. O consenso que os tinha trazido para a ribalta no final do século XVIII era frágil e tinha-se quebrado. A Declaração das Nações Unidas não se limitava a ser uma reposição. Era, antes, um recomeço. Um convite a que fossem procurados e encontrados fundamentos mais sólidos.

2ª. tese: os direitos humanos, devido à sua fragilidade essencial, carecem de uma garantia sempre renovada. Tornou-se comum, entre filósofos, juristas e sociólogos, classificar os direitos humanos em estratos históricos. A causa principal para tal ficou a dever-se à obra de Thomas Humphrey Marshall, Citizenship and Social Class and Other Essays, que, em 1950, se atreveu a universalizar o que, em grande medida, era apenas a experiência inglesa, mas com inegável repercussão e sucesso.

Teríamos um primeiro estrato, constituído pelos direitos civis, que foram o objetivo central das lutas reformadoras e revolucionárias do final do século XVIII: liberdade de crença e pensamento, direito a um igual tratamento perante a lei (contrariando a fragmentação e estratificação do direito estamental do antigo regime), direito à integridade do corpo perante restrições abusivas da liberdade pelas autoridades (habeas corpus), e à defesa da propriedade contra o arbítrio do Estado e dos particulares, etc.

Ao longo do século seguinte teria sido consolidado um segundo estrato de direitos humanos fundamentais. Desta vez de âmbito político. O direito à participação e organização políticas,o direito de voto, a exigência do fim da discriminação fiscal, censitária, etária e sexual do direito a eleger e ser eleito. Sob este ângulo, o século XIX foi caracterizado pela consolidação das democracias representativas e dos partidos políticos, bem como pelos primeiros sucessos do movimento operário.

Finalmente, o século XX teria assistido à consagração de um terceiro estrato de direitos humanos, ligado à esfera económica e social. Tratar-se-ia da consagração do Welfare State contemporâneo. A garantia de direitos económico-sociais no trabalho e na aposentação. A assistência na doença, enfim, toda a panóplia de predicados que integram os atuais sistemas de segurança social, em regressão acelerada no mundo ocidental que os viram nascer.

O contexto britânico da obra de Marshall é particularmente visível neste terceiro estrato. Com efeito, o Estado social britânico, com as suas três leis fundamentais, tinha sido consagrado na legislação trabalhista de 5 de julho de 1948. Valerá a pena recordar que um análogo triângulo normativo (envolvendo assistência na saúde, nos acidentes de trabalho, na velhice e invalidez) tinha sido promulgado, de modo absolutamente pioneiro, na Alemanha do chanceler Bismarck, na década de 1880, mostrando bem a fragilidade hermenêutica do esquema de Marshall. Contudo, ele continua a ser usado e, hoje, há mesmo autores que falam num quarto estrato de direitos, que contemplariam desde os direitos dos animais e da natureza (ou do ambiente, numa aceção mais vasta e rigorosa) até à renovada afirmação dos direitos dessa maioria esquecida que são as mulheres, bem como o despertar para a lei de novas minorias, longamente recalcadas, como é o caso dos homossexuais e dos cidadãos LGBTI em geral.

Esta interpretação histórico-reconstrutiva por estratos ou gerações dos direitos humanos tem, contudo, o inconveniente de criar nos cidadãos a crença totalmente injustificada de que existe uma correspondência entre o grau de antiguidade no reconhecimento dos direitos e o grau de segurança na garantia dos mesmos.

Num mundo, numa Europa e num país onde um cidadão pode ser agredido sem motivo justificativo numa esquadra de polícia, ou em que zonas do território constituem zonas interditas em que nem as forças da ordem podem circular sem risco físico, em que se assinam contratos de trabalho e de demissão, em simultâneo, para se ter acesso em condições deploráveis ao direito ao trabalho, em que os sistemas de segurança social ameaçam bancarrota a médio prazo, debaixo da ditadura de uma austeridade irracional, deixando uma sombra de inquietação nas camadas sociais em plena idade ativa e contributiva. Num mundo de progressiva insegurança, importa recordar que cada cidadão tem de ser um militante e um soldado dos e pelos seus direitos fundamentais. Eles, seja qual for a sua geração ou estrato, jamais estarão garantidos sem o compromisso individual e coletivo pela sua intransigente e simultânea defesa.

3ª tese: os direitos humanos encontram no respeito do ambiente e da natureza a sua fundamental condição de sustentabilidade futura. O pior inimigo dos direitos humanos no século XXI é constituído por uma conceção estreita e antropocentrista de humanismo.

A principal ameaça que impende hoje tanto sobre a humanidade como sobre os direitos individuais de cada cidadão resulta do inaudito e incontrolado poder tecnocientífico acumulado. É um poder que escapa ao controlo democrático, encontrando-se nas mãos de uma minoria ambiciosa, disseminada pelas sete partidas geográficas, económicas e ideológicas do mundo. O humanismo grosseiro (no fundo um pseudo-humanismo) é geralmente a sua marca distintiva comum. Em nome do papel central do homem,estes fundamentalistas do “humanismo integral” devastam os recursos naturais, derrubam e queimam as florestas, arrasam os habitats de milhares e milhares de espécies que connosco compartilham esta delicada habitação planetária, contaminam a água e o ar, envenenam as cadeias alimentares, deixam atrás de si a marca do deserto e da devastação.

É esta mesma criminosa ideologia, falsamente antropocentrista, que cria megalópoles em que ninguém pode viver com decência, que arrasta milhões e milhões de crianças para a escravidão de um trabalho precoce, ou para a mendicidade, as dependências e a mendicidade, promovendo a rutura das comunidades e dos seus valores.

A conjugação de tudo isto na crise global do ambiente atingiu uma nova zona de clarificação quando se tornou sensível e inegável, aquilo que durante décadas aparecia como mera hipótese científica: a existência de um processo de alterações climáticas em curso, que, como ficou mais uma vez comprovado através de importantes estudos dados à estampa em 2018, constitui a maior ameaça ao futuro da civilização humana, tanto na perspetiva dos direitos individuais como no ângulo temporal da justiça entre gerações.No século XXI, que começou de forma tão aziaga e violenta para os direitos humanos, se quisermos que estes sobrevivam ao risco de uma nova era das trevas, então as sociedades politicamente organizadas terão de caracterizar-se pelo respeito profundo pela sustentabilidade ecológica,ambiental e climática do planeta, porque só essa sustentabilidade poderá garantir a base vital em que repousam os direitos das gerações futuras. O mesmo significa garantir as condições indispensáveis de paz e segurança para que também os vindouros possam prosseguir a marcha, tantas vezes terrível, mas igualmente fascinante,da continuação inventiva da viagem histórica da nossa espécie neste magnífico orbe de água e terra que é a nossa única e hospitaleira casa em todo o cosmos.

Publicado originalmente na Edição Nº 54655 do Diário de Notícias de 10 de Dezembro de 2018

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