De Aristóteles a Schopenhauer o pensamento ocidental ergueu-se, sistematicamente, sobre o valor do princípio da causalidade: para conhecer as coisas do mundo (incluindo as humanas) temos de admitir que “nada acontece sem uma causa”. O princípio da causalidade está na base de quase três milénios de pensamento científico. Esse é, portanto, um valor europeu de alcance universal, que foi impiedosamente atacado na esfera mediática ocidental com a guerra na Ucrânia. Os mass media deste lado do mundo caracterizaram a invasão russa da Ucrânia como “uma agressão não provocada (unprovoked)”. Não bastava condenar a óbvia violação do direito internacional, era preciso varrer todos os acontecimentos ocorridos desde o colapso pacífico da URSS, em 1991, e o início da guerra em 2022. Tornou-se suspeito analisar trinta anos de diplomacia de Moscovo contra os sucessivos alargamentos da OTAN para Leste, ou os seus reiterados protestos, a partir de 2008, sobre a linha vermelha que a entrada da Ucrânia para a Aliança Atlântica representaria para a segurança russa (criando, pela proximidade geográfica, uma situação análoga à dos mísseis de Cuba para os EUA, em 1962). O derrube insurrecional em 2014, com apoio do Ocidente, do governo legítimo de Viktor Yanukovich, um ucraniano russófono, tudo isso foi considerado nulo, em favor da narrativa, já usada noutros tempos e lugares, de que a invasão se devia a um ato irracional de um líder maligno. Com isso, a OTAN, os EUA, a UE, ficavam libertos de uma análise autocrítica da sua conduta, baseada na tese, que se revelou como trágico preconceito, de que a Rússia se limitaria a protestos verbais. O pior, contudo, é que a liquidação do princípio da causalidade se estendeu também ao mundo académico. Com raras exceções, num assunto tão complexo e perigoso – como o é o da ocorrência de uma guerra de grandes proporções na Europa – os estudiosos de estratégia e relações internacionais foram privados da bússola e do método que permite pensar com objetividade e prospetiva os acontecimentos, sob pena de serem massacrados por uma nova inquisição com o insulto de dormirem com o “inimigo russo”.
Um brutal exemplo da indigência intelectual e moral a que conduz o “cancelamento” do princípio da causalidade ocorreu no dia 22 de setembro, no parlamento do Canadá, por ocasião da visita de Zelensky. É ainda possível visionar no Youtube uma cerimónia de homenagem, com dois aplausos em pé de toda a assembleia (incluindo Trudeau e Zelensky), a um “herói ucraniano” de 98 anos, Yaroslav Hunke. O presidente desse parlamento celebrou Hunke, por este já na II Guerra Mundial lutar contra os russos pela libertação da Ucrânia. Ninguém se lembrou de que nessa guerra o Canadá e a URSS eram aliados contra a Alemanha nazi, e que este país invadiu a URSS, devastando durante mais de 3 anos o território e o povo ucranianos. Foram necessários estudiosos judeus do Holocausto para desmascarar Hunke como um antigo voluntário de uma Divisão SS, formada por nazis ucranianos. Hunke foi um assassino de polacos (parte da atual Ucrânia ocidental era então território polaco) e judeus. Quem nega a causalidade destrói também a memória. Varsóvia pede agora a extradição do velho torcionário. Os “fracos reis” da caótica nau ocidental colocam a russofobia no lugar do pensamento e prudência estratégicos. Com o maior risco de escalada bélica ainda à nossa frente, talvez não falhem a oportunidade de nos levarem a todos ao fundo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias na edição de 7 de outubro de 2023, página 9.