Da pandemia vamos levar connosco esta experiência da morte invisível

Viriato Soromenho Marques é um dos mais reputados filósofos portugueses e professor catedrático da Universidade de Lisboa. Nesta entrevista, reflete sobre o que o coronavírus revelou sobre nós, sobre a relação da Humanidade com o tempo e, claro, sobre a forma como lidamos com a morte. De forma acutilante, aborda as tensões entre valores que a pandemia fez emergir.

A pandemia não se anunciou, chegou como um tsunami destruidor e em vagas. O Homem, segundo Viriato Soromenho Marques, vivia embrenhado na ideia de que o mundo é um local que “podemos gerir e dominar”, sendo ele próprio “o pináculo da criação”.

Apesar de não ter grande esperança de que este período nos mude, e altere a relação com o que nos rodeia, o filósofo de 63 anos alimenta a ideia de que pode ser um momento-chave para que possamos alterar a forma de habitar o planeta.

Nesta entrevista à Renascença, reflete sobre aprocura das caraterísticas inerentes à identidade do povo português para justificar o sucesso ou insucesso de medidas de combate à pandemia e de um fator que pode levar a que a Covid-19 se prolongue ainda por muitos anos.

O que é que a Covid-19 deu a conhecer sobre o ser humano e sobre o mundo em que vivemos?

Julgo que revelou algumas realidades sobre nós próprios que a nossa cultura contemporânea tem tendência a esquecer ou pelo menos fazer eclipsar. Revelou a nossa condição de seres mortais e a nossa fragilidade.

E contrariou todo um otimismo, uma autoconfiança e uma atitude de arrogância baseada sobretudo numa visão hipertrofiada das nossas capacidades científicas e tecnológicas que se traduziu, muito claramente, na primeira vaga, na forma cética, dubitativa como na Europa o risco de a pandemia se disseminar foi sucessivamente negada pelas autoridades sanitárias nacionais e europeias.

Houve uma reunião de um conselho europeu de saúde pública, na Suécia, e esse encontro decidiu não decidir nada. Foi a própria pandemia que se impôs e ditou as suas regras. Fomos incapazes de antecipar o que ali estava em causa. Não estávamos preparados.

Pôs em causa o papel que o Homem julgava ter no planeta.

Vivemos numa civilização que tem consciência de que há uma crise ambiental profunda, com muitas ramificações climáticas, mas que se prendem com um drama que para nós é menos visível − a diminuição da biodiversidade. Houve a extinção de muitas espécies e isso está também relacionado com a Covid-19.

Hoje é claríssimo, na leitura da literatura interdisciplinar − que junta a Biologia, a Medicina com a Epidemiologia. Vemos que nos últimos 35 a 40 anos, 75% das novas doenças estão ligadas a zoonoses − são saltos de material genético, neste caso vírus, de uma espécie para outra até atingir o ser humano. O Sars-Cov-2 é uma forma de zoonose, mas não é a única.

É a destruição de habitats.

É a nossa intrusão em habitats. A OMS foi a Wuhan e parece que não há uma certeza de que tenha começado em Wuhan. Mas os mercados de carne viva de Wuhan são pontos onde a zoonose ocorre. É possível que no futuro haja transmissão de doenças de animais para seres humanos naqueles grandes centros de produção de carne, seja de aves, seja de porcos.

“[A Covid-19] revelou a nossa condição de seres mortais e a nossa fragilidade. “

Vivemos num mundo em que a Europa não conta muito, mas é um mundo que tem os valores que a Europa criou nos últimos 500 anos. E um deles é o de que podemos gerir e dominar, e sermos o pináculo da criação.

Concluindo, o momento que vivemos colocou mais a nu as fragilidades do que as forças do ser humano?

Sem dúvida, enalteço o esforço que foi feito na vacinação. No entanto, mesmo a vacinação como estamos a ver revela as nossas fragilidades. Não só as individuais, daquelas pessoas que querem vacinar-se primeiro do que as outras, mas as dificuldades de organização e de boa gestão pública. Não apenas em Portugal, mas a União Europeia que está atrasadíssima no processo de vacinação.

“Foi a própria pandemia que se impôs e ditou as suas regras. Fomos incapazes de antecipar o que ali estava em causa. Não estávamos preparados.”

Revela a fragilidade do nosso sistema económico, temos um grande obstáculo que vai prolongar a Covid-19 por meses, ou por anos, talvez mesmo por anos. Esse obstáculo chama-se patentes. Estas vacinas são patentes, são propriedade privada, apesar de terem sido feitas com um investimento púbico gigantesco, com os contribuintes de todo o mundo que investiram, através dos estados, imenso dinheiro para a rapidez das vacinas.

A verdade é que elas não estão no domínio livre. São propriedade privada. A possibilidade de produzir grandes quantidades de vacinas que possam combater e debelar a Covid-19 no mundo inteiro, nomeadamente em países que não têm recursos para comprar a vacina, está completamente ameaçada pelo simples facto de que não há nenhuma indicação de que as grandes empresas farmacêuticas vão abdicar das suas patentes.

Somos uma sociedade em que há um contraste entre uma exuberância tecnológica e um défice moral e político gigantesco. Estamos organizados politicamente como se vivêssemos numa época pré-industrial. Moralmente, a nossa fortaleza ética não evoluiu nada nos últimos 10 mil anos.

A única coisa que mudou é a nossa capacidade de afetarmos o mundo. Infelizmente afetamos através de uma má gestão deste fantástico planeta. Estamos constantemente a pisar os limites, na agricultura, na indústria, na forma como lidamos com a atmosfera, a biosfera. Neste momento estamos a sentir as consequências.

“Vivemos num mundo em que a Europa não conta muito, mas é um mundo que tem os valores que a Europa criou nos últimos 500 anos. E um deles é o de que podemos gerir e dominar, e sermos o pináculo da criação.”

A grande lição desta pandemia é a necessidade de reinventarmos a nossa habitação da terra.

Houve durante este período, em muitas situações, a procura das caraterísticas inerentes à identidade do povo português para justificar o sucesso ou insucesso de medidas de combate à pandemia. Falou-se dos “portugueses obedientes” que criaram o milagre português e dos “portugueses irresponsáveis” que causaram a onda devastadora de mortes na terceira vaga. As caraterísticas genéricas de um povo podem ser usadas para justificar o sucesso do combate à pandemia?

Se compararmos as respostas que foram ocorrendo nos restantes países, – Itália, Espanha, Alemanha, França que são países que têm todos eles sistemas de saúde pública mais robustos do que Portugal – verificamos como Espanha e Itália sucumbiram na primeira vaga, tal como a França sucumbiu. Mesmo na Alemanha, nesta terceira vaga, a imprensa disse que a resposta tinha fracassado. Tinha havido um atraso no retomar de medidas de confinamento. A chanceler Merkel repetiu isso há pouco tempo.

Julgo que o comportamento da cidadania em Portugal foi, no essencial, um comportamento acima da média. E a prova disso está que nós, com exceção daqueles grupos esdrúxulos como os “Médicos pela verdade”, tivemos um grupo reduzidíssimo de manifestações públicas, e muito menos manifestações violentas do que as que aconteceram nos Países Baixos e na Alemanha. No ano passado, o Bundestag esteve quase a ser invadido por 20 mil negacionistas da Covid-19.

Nós não tivemos nada disso, o que tivemos foi um problema estrutural do nosso sistema político. Não podemos estabelecer uma relação de causalidade direta, em relação a esse conceito que também é ambíguo, a identidade de um povo. A identidade e um povo é fortemente plural.

“Temos um grande obstáculo que vai prolongar a Covid-19 por meses, ou por anos, talvez mesmo por anos. Esse obstáculo chama-se patentes”

Temos um sistema político em Portugal, e refiro-me às qualidades e aos defeitos da 3ª República, iniciado no 25 de abril, muito pouco preparado para as situações de emergência. O nosso planeamento em termos de políticas públicas infelizmente não nos prepara para o pior esperando o melhor.

Planeamos em cenários médios, cenários favoráveis. Não aprendemos com o nosso próprio sucesso. Tivemos um enorme sucesso na primeira vaga. Comparando com a Suécia, tivemos um quarto dos mortos em maio e junho de 2020, mas agora já ultrapassamos largamente os números desse país.

O que é que falhou?

O cansaço que houve foi o cansaço da liderança política. O cansaço do Governo, do primeiro-ministro, do Presidente da República − que nos últimos meses tem agido como uma espécie de sombra do Governo − quando na primeira vaga foi ele que forçou ao confinamento contra a opinião do primeiro-ministro. Nesta fase de dezembro e janeiro não teve uma voz própria nesta situação.

A necessidade de atribuir culpas e responsabilidades acentuou-se quando houve os primeiros insucessos. É possível fazer uma distinção entre as responsabilidades dos governos e a responsabilidade dos povos?

A responsabilidade tem uma hierarquia. Em sociedades politicamente organizadas, como é o caso de Portugal, quando alguma coisa acontece com esta dimensão − a multiplicação de mortes do ano passado − significa que houve uma falha na cadeia de comando.

“Somos uma sociedade em que há um contraste entre uma exuberância tecnológica e um défice moral e político gigantesco”

A atitude do primeiro-ministro em janeiro quando voltámos ao confinamento, em que fez um apelo critico ao comportamento dos portugueses, pareceu-me lamentável. Olhar para o histórico, para a decisões que foram tomadas, é mais fácil criticar os povos do que os governos se criticarem a si. É mais fácil, mas é errado.

Não é no povo que está a raiz do problema. Não podemos dizer que os povos são fantásticos e que as lideranças são competentes quando as coisas correm bem, e depois dizer que as responsabilidades são dos povos quando correm mal.

O que aconteceu aqui, e não está superado para o futuro, é que estamos a falar de uma crise sanitária com uma componente científica e técnica fortíssima, mas com uma possibilidade de diálogo permanente com a esfera política, que é quem decide.

É o Governo que decide, é quem está mandatado para tomar decisões. Mas dada a complexidade científica e técnica do que está em causa, o Governo tem de ser fortemente assessorado pelo melhor da inteligência que existe no país, e beneficiando, claro, da experiência internacional.

Isso falhou redondamente, porque nós não conseguimos criar um mecanismo para que o melhor do conhecimento seja expresso de uma forma organizada.

Mas um dos argumentos do Governo para a dificuldade em tomar decisões é o de que os pareceres científicos não são todos no mesmo sentido.

As reuniões do Infarmed não são a solução, são uma conferência, em que estão cientistas, membros do Governo, jornalistas e outros observadores.

Não são os cientistas que vão criar um conselho independente. Essa tem de ser uma decisão política. Para os governos tem de ser mais vantajoso poder consultar os cientistas de forma atomizada e serem confrontados com um conselho científico em que estão representados os melhores especialistas das várias áreas epistémicas que reúnem com independência, com reserva, sem holofotes e câmaras, e que na base de uma discussão científica produzem um relatório, que será de consenso possível.

” A grande lição desta pandemia é a necessidade de reinventarmos a nossa forma de habitar a terra. “

Isto não se fez. Foram ditas coisas incorretas, é falso que a variante inglesa só tivesse sido conhecida em janeiro. Desde 14 ou 15 de dezembro que essa informação chegou a Portugal. Segundo aspeto, no dia 11 de dezembro havia estudos que antecipavam que manter o Natal sem restrições – falo de estudos da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto − ia provocar um excesso de mortalidade de 1.500 pessoas em janeiro. Esse número foi muito superior. A intenção de liberalizar no Natal e depois fazer um travão no Ano Novo é pueril.

Abstenho-me da ideia de classificar que um vírus pode ser tolerado até ao Natal, e depois travado. Cientificamente é o grau zero. Não tem qualquer espécie de rigor. É uma conversa que não está à altura da responsabilidade política.

Estas coisas sabiam-se, houve um cansaço, mas foi um cansaço da liderança. Em relação ao Natal, o Governo deveria dizer que lamentava muito, mas tinha o dever de defender o direito à vida dos portugueses. Não há nenhum direito constitucional ao Natal, não há.

É útil e proveitoso no meio de uma crise o dirimir de responsabilidades e o atirar culpas?

Os portugueses estão muito atentos à maneira como as críticas estão construídas e uma critica que é excessiva, injusta, e que não é educada volta-se contra aquele que a profere. Agora não podemos de modo nenhum permitir que os governantes repitam erros permanentemente.

É um erro dizer que há literatura científica que prova que as escolas não são um fator de transmissão da Covid. Isto é um erro. É um erro clamoroso. Ouvi isto ser dito, muitas vezes, pelo primeiro-ministro.

“Julgo que o comportamento da cidadania em Portugal foi, no essencial, um comportamento acima da média”

A literatura mostra o contrário. Ele tinha dito na primeira fase que uma das razões do sucesso foi o encerramento das escolas. Nesta crise temos de ter a capacidade de fazer a critica, para corrigir os erros. Isto não acabou. Com um ritmo de vacinação tão débil teremos uma quarta e uma quinta vaga. Temos de ter a capacidade de ter um debate sério.

Este é um momento em que a nossa moral individual e as suas repercussões no comportamento coletivo é mais posto à prova. A vacinação é um exemplo, e o simples jantar em casa de familiares e de amigos é outro. Como vê este tipo de fenómeno e que efeitos está a produzir? Está a testar-nos ao limite?

Esta questão pandémica tem também um grande impacto psicológico. Temos de reconhecer que para a maioria da população, com a vacinação agora, vai passar ilesa sem infeções por Covid-19. Mas nenhum de nós sairá ileso dos custos e dos impactos psicológicos a que esta situação a todos nos confina e obriga.

Mas é precisamente nestas circunstâncias que temos de nos ajudar uns aos outros. Não temos só a obrigação de proteção uns aos outros, começando pela família e os amigos. Se temos um comportamento irresponsável, vamos não só ficar doentes, mas ver adoecer os que connosco partilham o espaço doméstico, de trabalho, ou encontros ocasionais.

“O nosso planeamento em termos de políticas públicas infelizmente não nos prepara para o pior esperando o melhor. Planeamos em cenários médios, cenários favoráveis. Não aprendemos com o nosso próprio sucesso. “

Também temos de nos ajudar a substituir uma cultura de medo, por uma cultura de responsabilidade. É um dos aspetos em que pensar corretamente ajuda a melhorar. Muitas vezes, temos estado confrontados com uma bonomia falsa, entre uma certa temeridade, por um lado, e uma certa atitude de medo.

A temeridade neste caso é irresponsabilidade, o ser temerário significa que se está a tomar um risco para si e para os outros que não está a ser bem avaliado. Não avaliar riscos não é sinal de coragem, é sinal de irresponsabilidade.

Por outro lado, a prudência não significa medo. Neste momento, suportar o sofrimento psicológico, que todos nós suportamos, uns mais do que outros, suportar isso é a forma de sermos corajosos e solidários.

Como é que uma sociedade em que o individualismo cresce pode responder a um fenómeno que exige uma resposta coletiva?

Verificamos hoje que a linguagem do marketing, da publicidade comercial, ocupa em grande medida o espaço do discurso político. Cada vez mais sabemos que é um discurso que funciona no registo publicitário, do “soundbyte”, mensagens curtas e muito simples, e divisíveis. Um exemplo de linguagem política destruidora de comunidade é o Presidente Trump.

Não sou muito crente na possibilidade de que lições fundamentais desta pandemia pudessem frutificar, mas alguns ensinamentos certamente serão aprendidos por todos nós e vão ter eco na nossa vida. Não se trata de uma crença, o reconhecimento da necessidade de atuarmos coletivamente. De atuarmos em formação unida, perseguindo o mesmo objetivo de nos protegermos uns aos outros.

“As reuniões do Infarmed não são a solução, são uma conferência, em que estão cientistas, membros do Governo, jornalistas e outros observadores. Não são os cientistas que vão criar um conselho independente. Essa tem de ser uma decisão política.”

A grande valorização que todos nós damos a todas as profissões do serviço público, sejam médicos, enfermeiros, que têm sido heróicos no seu esforço e que têm pagado com a sua saúde e com a sua vida, mas também todas as pessoas que levam a comida a casa, as pessoas que trabalham nas superfícies comerciais, a abastecer e vender, os bombeiros, as forças da ordem e da autoridade.

Tudo isso nos devolve a consciência de que somos uma comunidade. A única forma de sermos indivíduos livres e responsáveis é reforçarmos os nossos elos comunitários. Só há indivíduos fortes com comunidades fortes. E só há comunidades fortes se os indivíduos também o forem. Isso pode ser um legado importante da crise para o futuro.

As ameaças que impendem sobre o futuro são numerosíssimas. Teremos pandemias, e não se trata de saber se, mas quando. Vamos ter múltiplos fenómenos de emergência climática nas próximas décadas. E os grandes incêndios são um sinal de alarme.

Um outro conflito de valores que ficou bem marcado é o da liberdade individual em oposição ao biocontrolo para reforço da segurança sanitária. Como é que as sociedades ocidentais, por contraponto com outras, têm lidado com essa tensão?

Julgo que em grande parte o que está em causa fica a coberto por uma retórica que me parece não ser substantiva. No início da pandemia, houve um debate, nomeadamente em Itália, em que participaram alguns colegas de profissão. E um filósofo muito relevante, o italiano Giorgio Angamben, apresentou argumentos em três artigos que ficarão na história da pandemia como um marco lamentável da forma como mesmo um pensador inteligente pode pensar a realidade.

“Abstenho-me da ideia de classificar que um vírus pode ser tolerado até ao Natal, e depois travado. Cientificamente é o grau zero. Não tem qualquer espécie de rigor. É uma conversa que não está à altura da responsabilidade política. citação à vossa escolha”

Há uma certa retórica sobre a questão da biopolítica e do biocontrolo de pessoas que sem terem qualquer cultura epidemiológica, virológica, médica, carregaram numa espécie de botão automático, um botão de Pavlov, em que a partir do momento em que o Estado começou a tomar medidas que restringiram a liberdade dos cidadãos, para preservar a sua vida física, começaram a lançar o alerta de que a liberdade está em causa.

Com o que sabemos hoje, a devastação causada pela pandemia, com quase 2,7 milhões de mortos – em Portugal perto dos 17 mil mortos – não podemos continuar a usar demagogicamente biopolítica por oposição às liberdades fundamentais. Temos de aprender com a experiência.

Mas para os europeus e norte-americanos é mais difícil tomar medidas do que para os asiáticos, não apenas a China, mas a Coreia do Sul ou Singapura, e de países democráticos como a Nova Zelândia, em que foi mais fácil.

Quando olha para a China, onde é mais fácil aplicar um conjunto de medidas de controlo, pode levar as pessoas a pensar que este tipo de regimes tem vantagens numa crise como esta?

Penso que as pessoas podem pensar isso, mas pensam erradamente. A informação estatística é uma responsabilidade dos estados e não temos garantia de que os dados da China tenham o mesmo grau de fiabilidade do que os que saem da DGS. Mas admitindo que a política chinesa teve sucesso, a disciplina física só é possível na presença de uma repressão externa de uma autoridade repressiva.

Acredito que nas sociedades da Europa existe espírito cívico, e com informação adequada, e com uma política de liderança responsável, os cidadãos europeus são capazes, sem mecanismos de coação, − semelhantes aos que existiram no caso que estamos a analisar − de atuar de forma ordenada.

“É um erro dizer que há literatura científica que prova que as escolas não são um fator de transmissão da Covid. Isto é um erro. É um erro clamoroso. Ouvi isto ser dito, muitas vezes, pelo primeiro-ministro.”

O momento que estamos a passar avivou as tensões latentes entre universalismo (moral) e particularismo (estadual). Falo do abastecimento de máscaras e a compra de ventiladores na primeira vaga, ou a vacinação mais recentemente. É possível resolver este conflito?

No plano europeu, quer na fase inicial da luta pelas máscaras, de competição selvagem, dos aviões com carregamentos de ventiladores que eram desviados dos aeroportos, e na atual situação de grande descontentamento com a política que foi assumida e bem assumida pela União Europeia, penso que o que está em causa é a grande fragilidade das instituições europeias.

Continuamos com uma Europa que é uma promessa e não uma realidade. Esta comissão e a presidente que é bastante voluntarista têm capacidade de fazer consensos, mas os meios que efetivamente detêm ainda vão muito longe. Em paralelo aos governos nacionais devíamos ter um Governo europeu. A União Europeia, para que estar à altura dos desafios contemporâneos, devia ter uma federação europeia com um Governo europeu que partilhava a soberania com os governos nacionais.

Isso falhou na compra das vacinas, e as empresas farmacêuticas que olham para esta questão como uma questão de mercado fizeram as suas escolhas. Houve aqui uma questão de falta de capacidade, ou de poder político negocial.

Os países mais desenvolvidos vão ter as vacinas, mais mês menos mês, e o resto do mundo? O que é que vai acontecer à população africana e na América do Sul? E na Ásia? Esses milhares de milhões de pessoas vão ter acesso à vacina ou não? Também é uma questão política que tem a ver com as patentes.

Isso só se consegue ou através da abolição da patente, que passem a ser de acesso livre, e qualquer laboratório pode aceder às vacinas, e há um rápido acesso à vacina, ou então os países mais desenvolvidos compram as vacinas para os países menos desenvolvidos.

Penso que a primeira hipótese seria a mais adequada. E seria justamente o preenchimento dessa lacuna entre o interesse nacional e o universalismo retórico que os políticos têm no discurso, mas não na sua prática.

Numa sociedade que hipervaloriza o tempo como se gere a perda de tempo?

Uma das coisas que aprendemos na pandemia individualmente é a de que o tempo não nos pertence. Nós é que pertencemos ao tempo. Na nossa tradição europeia, temos o ditado de que “O tempo a Deus pertence”, indicando que não somos donos do tempo.

Nascemos no tempo, vivemos no tempo, morremos no tempo e as nossas agendas são ficções que construímos até que a realidade as desfaça. Todos nós tínhamos imensos planos, imensos objetivos, e tudo isso foi desfeito pela pandemia ou fortemente alterado. Este é um aspeto. Primeira lição em relação ao tempo, a humildade.

“Com um ritmo de vacinação tão débil, teremos uma quarta e uma quinta vaga.”

Segunda lição, aquilo que fazemos com o tempo, o sentido do tempo. Vivemos numa sociedade em que o que vale é a fórmula do capitalismo clássico, a de que tempo é dinheiro.

A pandemia tem sido avaliada em pontos percentuais do PIB que foram perdidos. Quando se fala em retoma é voltarmos a ter um tempo economicamente produtivo. Mas ao mesmo tempo na experiência da pandemia, fomos brindados pelo espetáculo daquelas espécies que partilham o planeta connosco e que nas cidades desertas começaram a dar sinais de vida.

Todos nós, mesmo vivendo em cidades, ouvimos o canto de aves que não estávamos habituados a ouvir ao pé de nossa casa.

Nós também nos interrogamos se a melhor métrica para o tempo será a de uma encomia produtivista. Tanto mais, se quisermos ser honestos connosco próprios, antes da pandemia nós já sabíamos que estávamos a viver num futuro que se encaminha para uma grande ameaça e um grande perigo que é o da crise ambiental.

Vamos ter de pensar o tempo fora de um quadro de crescimento económico. Se queremos sobreviver à crise ambiental e climática, vamos ter de recusar usar o tempo para as atividades que têm impacto destrutivo no ambiente.

“Temos de nos ajudar a substituir uma cultura de medo, por uma cultura de responsabilidade”

Vamos ter de repensar a jornada de trabalho, a forma como o rendimento chega às pessoas, ou o rendimento universal garantido. São debates que esta pandemia está a ativar. Vamos ter de partilhar trabalho, ter jornadas de trabalho assalariado menos intensas.

Com a revolução tecnológica e robótica, se não tivermos medidas de política pública antecipativa, vamos ter conflitos em todo o mundo por desaparecimento de milhões de posto trabalho, mesmo sem pandemia.

Pelo menos desde Platão que “a morte é um tema central na filosofia”. Que mudanças é que a pandemia introduziu na forma como lidamos com o tema, e que alterações haverá para o futuro?

Vamos levar connosco esta experiência da morte invisível, de tantos familiares, amigos, conhecidos, que sabemos que morreram, mas não pudemos acompanhar na despedida.

“Neste momento, suportar o sofrimento psicológico, que todos nós suportamos, uns mais do que outros, suportar isso é a forma de sermos corajosos e solidários.”

A pandemia devolveu-nos à nossa condição de seres mortais. Uma das coisas que a nossa cultura contemporânea, que produziu uma indústria do otimismo, tem feito é a transformação da morte não naquilo que ela é, ou seja, passou de uma questão antropológica e, para alguns, teológica, para ser uma questão tecnológica.

Temos uma indústria do prolongamento da vida, e do encarniçamento da vida, além dos 100 anos, dos 120 e dos 130 anos, através de uma biotecnologia aplicada aos nossos corpos. É uma ideia que revela a profunda doença psicológica do nosso mundo contemporâneo.

“Uma das coisas que aprendemos na pandemia individualmente é a de que o tempo não nos pertence. Nós é que pertencemos ao tempo. (…) Nascemos no tempo, vivemos no tempo, morremos no tempo e as nossas agendas são ficções que construímos até que a realidade as desfaça”

Por um lado, temos uma cultura que recusa aceitar a morte do individuo e ao mesmo tempo promove a destruição do ecossistema planetário, onde todas as vidas individuais têm a sua casa comum. Estamos a trocar a árvore pela floresta. É um dos fenómenos de psicopatologia coletiva mais interessantes de estudar na sociedade contemporânea.

Perceber que somos seres mortais, que a nossa morte é fundamental, e a aceitação da nossa morte é fundamental para darmos sentido às nossas vidas, que é por sermos mortais que a nossa vida pode ter valor, porque nunca teremos o aborrecimento da eternidade.

Penso que a pandemia nos pode ter dado algumas lições de coragem ética e de verdade antropológica, de nos olharmos no espelho como seres humanos e não como semideuses.

Entrevista conduzida por João Carlos Malta Publicada em 17 de março de 2021 na Rádio Renascença ler transcrição original aqui

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