Estamos a assistir a uma grande regressão das democracias liberais. As duas margens atlânticas do Ocidente, que inventaram no último meio-milénio o planeta global que habitamos, com a sua arquitectura política e o seu crescimento económico exponencial, estão neste momento num duplo processo tectónico de afastamento e fragmentação. Perante os gigantescos desafios da desordem crescente do mundo, na altura em que é preciso pagar a factura ambiental e social, acumulada em séculos de dominação ocidental baseada na fusão fáustica entre capital, tecnologia e supremacia militar, eis que as democracias, um pouco por todo o lado, escolhem para as governarem, líderes mitómanos e vendedores de tóxicas ilusões. O extraordinário caso do grito de lucidez de uma criança sueca, Greta Thunberg, parece ser a metonímia perfeita deste tempo em que os povos elegem chefes dotados de um pensamento infantil, enquanto são as crianças que exigem as palavras e os actos de maturidade, próprios dos adultos.
De entre os novos líderes, Trump tem centrado as atenções. Não apenas pelo papel nevrálgico dos EUA, mas sobretudo pelo narcisismo histriónico do personagem, que o torna num objecto incontornável de observação. Sustento, contudo, que é Theresa May, e não Trump, que pode ser vista como o “tipo-ideal” do líder político desta época de entropia ocidental. Nada do que Trump diz ou propõe resiste a uma análise racional, contudo, ninguém pode negar a Trump a força das suas convicções, o que é provado pela sua presidência apenas ao serviço do eleitorado que o elegeu. May, pelo contrário, surge como uma líder que não só nega a realidade (nisso se aparentando a Trump), como dispensa quaisquer convicções, e ainda menos princípios. A ideia de que May, aparentemente adversária do Brexit, teria sacrificado as suas opções pessoais para servir o resultado da votação popular no referendo de 2016, chega a ser repugnante. May representa uma “classe política” sem qualquer visão estratégica, roçando o analfabetismo quando se trata de lidar com a complexidade (veja-se o teor deplorável do debate nos Comuns), cujo desiderato é chegar ao governo a qualquer custo, fazendo tudo o que seja necessário para nele se manter no mais longo tempo possível. A resistência de May às humilhações dos seus próprios deputados e ministros, não é resiliência, é falta de autoridade em estado puro. O segredo da democracia moderna quando foi inventada – primeiro de modo híbrido na Grã-Bretanha, e depois com robustez constitucional nos EUA – residia na crença de que o povo, não podendo exercer o autogoverno em pessoa, escolheria dentro de si os cidadãos mais esclarecidos e capacitados para perseguir o bem comum. A dignidade de líderes políticos, que sejam fiéis à sua visão do melhor caminho para os respectivos países, não é um predicado menor, mas uma característica essencial da vitalidade política. Quando as democracias escolhem líderes sem alma, prontos para tudo, ao ponto de não serem apenas risíveis, mas desprezíveis, isso significa que o corpo político está gravemente doente.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, na edição de 24 de Março de 2019, página 27.