BASTA OLHAR EM VOLTA

Quando em 15 de Outubro de 1940, O Grande Ditador, de Charlie Chaplin, estreou nas salas de cinema dos EUA não sei se o público terá sentido aquele libertar de tensão que esse imorredoiro e inspirado filme merece, quando apreciado a uma distância temporal conveniente. Nessa altura, apesar de os EUA não terem ainda entrado directamente no conflito, os tambores de guerra ouviam-se já, tanto dos lados do Atlântico como das bandas agitadas do Pacífico. Apesar do desejo de paz, os cidadãos norte-americanos devem ter sentido alguma amargura perante a caricatura de Hitler, que na altura tinha a Europa a seus pés, com a excepção da Grã-Bretanha de Churchill.

O mais recente filme de Adam McKay, Não Olhem para Cima (Don’t Look Up), produzido pela Netflix, é também uma sátira política, e tal como o filme de Chaplin já mencionado deixa nos seus primeiros espectadores, pelo menos neste que agora escreve estas linhas, uma inquietação superior ao divertimento proporcionado. E não está em causa nem a qualidade do argumento, nem o indiscutível mérito dos actores. O problema reside no facto da caricatura fílmica da realidade com que hoje nos debatemos, acentuar ainda mais a desproporção entre o poder imenso e a lamentável ausência de densidade humana das elites – falo aqui dum híbrido que junta o mundo da política e o mundo dos negócios – que nos governam. Outra diferença que modera o humor no filme reside na ausência de alternativa, o peso de uma gravidade que nos esmaga a um rumo sem desvios que alentem a esperança. Sem querer provocar nenhum efeito de “spolier”, a verdade é que em 1940, ninguém duvidaria que a história não terminaria com Hitler. Até o ditador austro-germânico tinha a modéstia de não querer mais do que um milénio para o seu império. Quando contemplamos a marcha da crise ontológica global associada à crescente degradação estrutural do ambiente e clima, com consequências que se irão projectar por séculos e milénios, não podemos deixar de reconhecer que a estória do filme, sobretudo o seu desfecho, acaba por ser demasiado realista.

O tema central é a nossa incapacidade, como sociedade, de compreender o que está verdadeiramente em causa na mudança para pior que estamos a operar neste magnífico e único planeta, que nos foi dado como pátria cósmica. O enredo do filme utiliza como metáfora para a nossa crescente ameaça ecológica, a descoberta por astrónomos de uma universidade pouco relevante – onde sobressai o professor Randall Mindy (DiCaprio) – de um grande asteróide, com 10 km de diâmetro, em rota de colisão com a Terra. A acção sucede-se vertiginosa, e na sua desfilada vemos toda a paleta de reacções que a crise ambiental tem provocado ao longo do tempo: incredulidade, espanto, negação, escapismo, oportunismo, angústia, resignação…Somos convidados a seguir o percurso do Dr. Mindy, qual Candide do nosso tempo, pelos corredores da Casa Branca, pelos programas de grande audiência da televisão, pelo complexo militar dos EUA. Mindy vacila entre o aturdimento e o deslumbramento. Sucumbe à sua rápida transformação numa estrela mediática. Quase esquece a sua missão de salvar a humanidade, redimindo-se na parte final.

Duas personagens concentram as figuras de proa da nossa época. A Presidente Janie Orlean (Meryl Streep) e o bilionário Peter Isherwell (Mark Rylance). Ambos os personagens agem dentro das expectativas que a vida quotidiana dos seus “originais” nos devolve. A Presidente é uma personalidade superficial, venal, habitando na espuma das sondagens, incapaz de distinguir o essencial do acessório. O bilionário Isherwell, a cujos caprichos a Presidente obedece sem hesitação, é uma mistura de Elon Musk e Jeff Bezos. Um manipulador, com a voz suave de um guru, que não hesita em obrigar a Casa Branca a cancelar uma operação de ataque nuclear ao asteróide, para tentar fazer um bom negócio com os metais raros em que ele é abundante.

Trata-se de um filme, onde a sátira não retira carga metafísica, que revisita os nossos mitos agonizantes, e os ídolos em queda, gerados, primeiro nos EUA, mas gozando hoje lugar firme no inconsciente colectivo globalizado. A seu modo é uma reflexão sobre a fase terminal da era do niilismo em que há muito entrámos. Uma era em que a porta de entrada foi de uma nitidez excessivamente documentada. Mas cuja porta de saída, sobre a qual os vaticínios são bastante sombrios, nos obriga a pensar se alguma vez a liberdade humana foi algo mais do que uma ilusão.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 12 de Janeiro de 2022, p. 29.

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