BABUÍNOS COMO NÓS

O grande filósofo grego, Epitecto, escravizado e agredido pelo seu proprietário romano, secretário de Nero, lembra-nos como na humanidade o desprezo e o domínio dos outros não precisou do racismo para existir. Ao longo da história, diferentes e muitas vezes convergentes são as formas de xenofobia, de opressão e exclusão do Outro. Apenas a superioridade na componente militar de cada cultura é o factor decisivo que separa vencedores e vencidos. No dealbar do século XVI, os Astecas tinham água canalisada na sua capital, mas Cortés tinha armas de fogo. A lança mais comprida é também inseparável da moderna hegemonia planetária do Ocidente. 

Mas isso não é racismo. Para perceber a diferença, importará revisitar os estudos do saudoso Manuel Viegas Guerreiro (1912-1997), sábio pluridisciplinar e conhecedor do mundo. Na sua leitura dos escritos de Pêro Vaz de Caminha e de Cristóvão Colombo, o geógrafo português identifica um genuíno desejo de verter na escrita o espanto por povos tão diferentes e desconhecidos (a América foi uma espécie de encontro do 3.º grau), mas nunca abandonando o pressuposto da “unidade psíquica do homem”. Em contrapartida, se percorrermos a literatura colonial europeia do século XIX – incluindo os nossos tardios africanistas, que ainda estavam a percorrer os caminhos entre Angola e Moçambique, quando as fronteiras dos impérios europeus em África se decidiam em Berlim –, o racismo está caudalosamente omnipresente. Na descrição dos africanos, os colonizadores europeus, inchados de arrogância, limitavam-se a despejar os seus preconceitos sobre povos que foram considerados sub-humanos. No final do século XV, D. João II fazia alianças e apadrinhava no baptismo príncipes dos reinos da África Ocidental. No século XIX, pelo contrário, a aliança tóxica entre uma biologia rústica e um nacionalismo cada vez mais belicista, criou o ódio ontológico, que tanto exterminaria milhões pelo trabalho forçado no Congo belga, como aniquilaria a aristocracia intelectual judaica, num Holocausto consentido pelas massas que apoiaram o nazismo.

Poderemos e deveremos analisar os dispositivos constitucionais de Portugal, ou de qualquer país, para verificar se neles persiste a presença de elementos discriminatórios de base étnica. Não ouso sequer colocar a possibilidade de o brutal assassinato do artista Bruno Candé Marques ter outro desfecho que não seja o da condenação do homicida, após um regular e rigoroso processo de justiça. Faremos bem. Mas será sempre insuficiente. Dito de outro modo: um país pode não ser racista, à luz das suas normas constitucionais (como é claramente o caso de Portugal), mas manter em simultâneo uma maioria sociológica que partilha ou tolera crenças de teor racista. Em 1953 a descoberta do ADN, mostrou que o racismo “científico” é uma fábula. Mas ele alimenta-se do vírus do mal, que não pode ser extirpado. Apenas minimizado pela disciplina do respeito. Na verdade, nós, humanos, ainda não saímos do estaleiro. Partilhamos 94% do material genético com os babuínos. Sem ofensa para os babuínos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 8 de Agosto de 2020, p. 12

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Paulo Rodrigues

“Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso; eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei; eu também não era operário. Depois, prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso porque eu não sou miserável. Depois, agarraram uns desempregados, mas como tenho o meu emprego, também não me importei. Agora, estão me levando também. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.”
Bertold Brecht