AS MÁSCARAS DO MAL NA CRISE GLOBAL DO AMBIENTE

No nosso ensaio publicado na anterior edição do JL analisámos a concepção de “banalidade do mal”, proposta por Hannah Arendt, a partir do seu estudo do caso do líder nazi, Adolf Eichmann, julgado e executado em Israel (1962) pelo seu papel no Holocausto. Nesta breve reflexão tentaremos seguir duas pistas principais que nos poderão ajudar a perceber até que ponto esse conceito de banalidade do mal pode ser útil para compreender a estrutura moral da crise global do ambiente.

Os Olhos Vendados da Modernidade

Não existe acto (i) moral sem a consciência da linha divisória entre o bem e o mal. Do humanismo renascentista ao niilismo oitocentista, culminando no neodarwinismo e nas outras grandes narrativas histórico-políticas do século XX, muitas foram as efabulações modernas que contribuíram para tornar cada vez menos óbvia essa barreira, enfraquecendo a espontaneidade do imperativo categórico da ética kantiana, a única que na minha leitura poderá mais decisivamente contribuir para uma reconstrução da problemática ética nestes tempos de atribulada crise existencial contemporânea,

O princípio da universalidade presente na ética kantiana, isto é, a necessidade de agir moralmente como se a máxima da nossa acção pudesse constituir-se como uma lei universal para um mundo possível, foi sendo reduzida por sucessivas reduções e restrições. Desde logo, a ruptura ontológica em que se fundamenta a tecnociência moderna. A separação cartesiana entre a coisa pensante (res cogitans) e coisa extensa (res extensa) que vai dispensar-nos completamente de qualquer reserva moral no modo como nos comportamentos com a Natureza, incluindo os animais. Muitos modernos não foram tão longe como Descartes – recordem-se os textos educativos de Condorcet sobre o valor moral da gentileza para com os animais – na indiferença pelo sofrimento dos animais (considerados máquinas sem consciência), mas o mundo em que vivemos é cartesiano. Quem sobrevoe os campos canadianos, russos ou brasileiros onde se devora a paisagem para extrair areias betuminosas, níquel ou ouro, dizimando florestas milenares e deixando um rasto de terra esventrada e bacias hidrográficas contaminadas dificilmente deixará de sentir um sobressalto, mesmo que de curta duração. O mesmo se passa na crueldade organizada que preside ao uso de animais para a alimentação humana. A generalização das visitas aos matadouros, mesmo nos países mais desenvolvidos, faria mais pela diminuição dos vários malefícios das dietas carnívoras do que milhares de páginas favoráveis ao vegetarianismo.

A modernidade produziu não apenas modelos de neutralização moral, que excluíram grande parte do mundo material objecto da intervenção humana da necessidade da esfera do consideração e do juízo éticos, como construiu narrativas que valorizaram moralmente toda a espécie de crimes e abusos. A situação de catástrofe ambiental em que estamos mergulhados hoje até ao pescoço foi justificada pela banda sonora da emancipação humana. Pela glorificação do engenho tecnológico, do talento empreendedor. A mais densa e tóxica poluição, era amaciada como o preço suave da riqueza cada mais volumosa, ou como o cadinho da formação de uma classe operária que iria, num acto messiânico, concluir a história abolindo a exploração das classes e instalando a justiça universal.

Mas a ocultação do mal não foi exercida apenas sobre a Terra, sobre as paisagens, a diversidade biológica, ou as forças telúricas da água e do ar. A modernidade foi também uma máquina de narrativas justificativas da exclusão, violência, dominação e extermínio de outros seres humanos. A escravidão, os massacres de povos inteiros nas campanhas coloniais, a criação de uma nova servidão da gleba nas cidades da Revolução Industrial, e tantas outras formas de segregação sobre a desprezada maioria feminina, ou sobre minorias de todo o tipo, foram justificadas em nome da expansão do cristianismo, ou como dores de parto passageiras da apoteótica construção de uma civilização global, que, depois de assaltar os céus, tomaria nas suas mãos o leme sobre o seu destino.

A Desobediência Ética

Infelizmente, o leme da emancipação moderna partiu-se e o barco onde habitam quase 8 mil milhões de criaturas está à deriva, sem rumo nem cartas de marear. O mundo contemporâneo liquidou a política como espaço de deliberação e entregou-se a um fatalismo muito pior do que aquele que na tragédia grega era atribuído ao capricho dos deuses. Hoje o destino é o comboio sem travões de uma sociedade que se atrelou aos automatismos da economia mundial de mercado. Nem sequer temos o coro trágico para nos avisar. Estamos sozinhos, dentro de uma espécie de máquina do juízo final. Se a deixarmos funcionar a todo o vapor, poderemos almoçar e jantar, mas estaremos a tornar inevitável o colapso ambiental e climático global, num horizonte que se irá acumulando ao longo das décadas, até se transformar numa realidade hostil e inabitável. Se a quisermos reformar, ou travar o seu curso, corremos o risco de descarrilar o sistema inteiro, transformado a inércia numa implosão caótica de estilhaços cortantes. É a esta situação aparentemente aporética que Naomi Klein chamou o calabouço planetário em que o neoliberalismo sequestrou a história humana. É isso, também, a “economia que mata”, na corajosa expressão do Papa Francisco.

Não surpreende que a ética se tenha fragmentado em muitas deontologias particulares, pois um horizonte unificador há muito se perdeu ou deixou de ser credível. Antes de perdermos a capacidade de deliberação moral, perdemos a liberdade de que essa deliberação depende. A liberdade que consiste na convicção de que a nossa acção individual, conjugada com todas as outras, pode fazer a diferença no desenho e orientação do futuro, Na era da crise global do ambiente, a banalidade do mal manifesta-se mais pela demissão do que pela cumplicidade activa. Na vertigem do comboio sem freio onde estamos embarcados, paralisa-nos o mal difuso que nos transforma em vítimas impotentes. Por isso mesmo, cada vez mais o difícil caminho da recuperação da dignidade que só a liberdade permite será, cada vez mais frequentemente, um acto de desobediência económica, civil e política.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 15 de Julho de 2020, página 29.

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Paulo Rodrigues

“O facto de termos todos o mesmo desejo(…) transforma-nos numa massa uniforme.”
Virginia Woolf “As Ondas”