Numa das numerosas salas do museu Hermitage de São Petersburgo – o antigo Palácio de Inverno dos czares, símbolo da revolução de 1917 – há uma tela que surpreende, e faz juntar turistas em pequenos magotes. Tem como título “Punição de um caçador” (1647). O seu autor é o holandês Paulus Potter (1625-1654). Nos seus parcos 29 anos, de uma vida interrompida pela tuberculose, Potter pintou abundante e magistralmente animais. Contudo a tela de 1647 é diferente. Traduz alegoricamente a revolta dos animais pelo modo como nós, os animais humanos, os tratamos. Sem dó nem piedade. Lembrei-me desta obra ao ler o mais recente livro de José Rodrigues dos Santos, “O Jardim dos Animais com Alma” (Gradiva), correspondendo ao amável convite do escritor e jornalista para participar no acto de lançamento da obra. Sem deixar de ser um texto de ficção, com uma trama ágil, destinada a prender o leitor a um fio narrativo que se vai desvelando, causando curiosidade e prazer, este livro oferece muito mais do que entretenimento. O autor estudou profundamente o tema da nossa relação com os animais. No final deparamo-nos até com uma ampla bibliografia, quase como nas obras académicas. No percurso de leitura, para além da solução do enigma de um crime, este livro deixa os leitores a meditar sobre uma dura constatação. O modo como lidamos com os animais reflecte as muitas imperfeições que lançam uma sombra de vergonha e culpa sobre a nossa atribulada condição humana.
O livro debruça-se sobre o que foi e é a construção histórica e cultural de um verdadeiro muro ontológico entre nós e os animais, e como ele está a ser derrubado pela moderna etologia, fundada por Konrad Lorenz, ou pelos numerosos estudos sobre comportamento e inteligência animais, inspirados pelo exemplo pioneiro da primatologista Jane Goodall. Contrariando a prédica de Francisco de Assis (1182-1226), que respeitava todas as criaturas como irmãs dos humanos na viagem da Vida, a Modernidade, apesar de hesitações, acabou por seguir a via cartesiana, arrancando aos animais a capacidade de pensar e até de sentir, como se eles fossem meros autómatos mecânicos, sem inteligência nem faculdade de experimentar dor e prazer. Sem essa grosseira caricatura, visando imunizarmo-nos contra a natureza complexa e sensível dos animais, não teria sido possível a transformação de milhares de milhões de seres vivos em matéria-prima para satisfação das nossa necessidades e caprichos, seja na produção industrial de carne, seja nas experiências laboratoriais para cosméticos ou medicamentos, entre muitos outros usos e abusos. Este livro desafia o leitor a olhar de frente a imensa crueldade em que assenta a nossa dieta e o nosso estilo de vida, roubando cada vez mais território à vida selvagem, colocando em causa a segurança ambiental e climática do planeta, pelo imenso contributo da indústria da carne para a destruição das florestas e as emissões de gases com efeito de estufa, em especial o metano. Além de nos despertar para o impacto positivo que decisões individuais podem dar para resistir à marcha suicidária em curso, José Rodrigues dos Santos identifica certeiramente a essência ética da questão: “A forma como tratamos os animais define o que somos. Temos obrigações para com eles, não porque eles tenham direitos, mas justamente porque não os têm, porque se encontram impotentes perante nós, porque estão à nossa mercê e o dever dos fortes é respeitar e defender os indefesos”.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 20 de Novembro de 2021, página 10