Nas planícies da Ucrânia, os exércitos de Kiev esperam pelas armas de topo de gama que os EUA e outros seus aliados lhes prometeram. Até lá, a Rússia – confrontada com os limites do seu poderio em forças convencionais – tentará consolidar o seu domínio sobe o Donbass. Entretanto, as planícies vão secando, permitindo constituir o terreno perfeito para a guerra de movimento. Lá para final de julho e inícios de agosto, caso não ocorram improváveis negociações, assistiremos à contraofensiva ucraniana, numa série de batalhas como nunca mais ocorreram em solo europeu desde os derradeiros confrontos de 1945. Do seu resultado dependerá uma improvável cessação de hostilidades, ou o eventual mergulho no inferno nuclear, de dimensão e geografia, agora, absolutamente impossíveis de antecipar. A guerra faz parte do código genético da Europa, pois ao contrário do que alguns neoconservadores norte-americanos escreveram na altura da agressão ilegal e injustificada dos EUA contra o Iraque em 2003, a Europa nunca foi de Vénus. Sempre foi de Marte. E, provavelmente, será desintegrada como civilização pelo fogo lançado pelo deus da guerra.
A pulsão europeia para a autodestruição
Pela primeira vez desde que Portugal deixou registos na história mundial, o país entrou numa guerra sem saber nem como nem porquê. O bizarro funcionamento da União Europeia e o punho de ferro, consentido pelos europeus, dos EUA sobre a OTAN conduziram-nos a esta fase inicial de guerra contra a Rússia. É claro que a condenação da invasão russa e o apoio humanitário são indiscutíveis. Mas o que está em causa, na transformação da Ucrânia num país de facto da OTAN, é a possibilidade de Portugal se envolver – sem qualquer espécie de avaliação de risco e deliberação própria – numa guerra contra a maior potência nuclear do planeta, governada por quem considera que todas as armas, incluindo as nucleares, podem ser usadas se estiver em causa a perda por parte da Rússia do estatuto de grande potência. Para meter Portugal na I Guerra Mundial foi preciso derrubar a tiro, com centenas de mortos, o governo de Pimenta de Castro, em maio de 1915. Para evitar que Portugal se deixasse devorar na II Guerra Mundial tivemos a talentosa “neutralidade colaborante” de Salazar, a quem só os cegos pela ideologia não reconhecem o inestimável serviço de salus populi que representou para Portugal. Em 1870, enquanto os canhões da guerra franco-prussiana ainda rasgavam os céus e ceifavam a vida de soldados e civis, João de Andrade Corvo (1824-1890) escreveu o seu clássico livro, Perigos. Portugal na Europa e no Mundo (prefácio de Adriano Moreira, Lisboa, Fronteira do Caos, 2005), um dos mais brilhantes e premonitórios ensaios sobre o modo como o nacionalismo iria devastar belicamente a Europa. Em maio de 1871, na sua famosa conferência do Casino, Antero de Quental ainda olhava para a Europa protestante como um modelo de futuro possível, que Portugal perdera sem remédio ao abraçar de corpo e alma a Contrarreforma tridentina. É verdade que Antero não guardaria demasiadas ilusões sobre uma Europa perdida num lodaçal militarista de ambições paroquiais, sem qualquer densidade intelectual. Contudo, Andrade Corvo, ao escrever o seu livro de 1870 parecia ter desembarcado de uma cápsula do tempo, regressada do futuro. Nem mesmo Karl Marx foi tão perspicaz como Corvo, apesar de o autor do Das Kapital, ter antecipado que, depois da criação da Alemanha bismarckiana em 1871, as guerras entre Berlim e Paris se iriam transformar numa autêntica “instituição europeia” (europäische Einrichtung).
Como um pintor de génio que em breves pinceladas transforma uma tela em branco numa obra de arte incomparável, Andrade Corvo desenhou os novos desafios para Portugal face a um mundo em mudança: a vitória da Prússia conduzirá à unificação da Alemanha; esta unificação, por seu turno, irá acentuar a dinâmica perigosa do “princípio das nacionalidades”, sobretudo numa dimensão irracional, e não voluntária e deliberativa: “Ao formar-se, o império alemão levantará a grave e perigosa questão das raças. A doutrina traduzir-se-á em factos; e daí poderá vir ao mundo civilizado uma profunda transformação” (p. 220). A conceção de nação em vez de ser baseada no “assentimento geral”, sofrerá o atrito de outros fatores, nomeadamente relacionados com a projeção de uma ideologia biológica na esfera política. Andrade Corvo pensa a identidade nacional do mesmo modo como os seus contemporâneos Oliveira Martins e Antero de Quental. Não como um impulso irracional, mas como deliberação, decisão consciente, projeto coletivo testado pela experiência e pelo tempo. O contraste com as novas doutrinas europeias não poderia ser maior. Andrade Corvo atinge mesmo uma espécie de precisão profética quando, olhando para o futuro, vê o horizonte manchado pelos rubros clarões de novos conflitos que deixarão a tranquilidade e a independência, sobretudo das pequenas nações, sobre forte ameaça. Que poderia fazer Portugal?
Alianças condicionadas a interesses permanentes
O rasgo visionário de Andrade Corvo, sem paralelo com nenhum outro pensador europeu que lhe tenha sido contemporâneo, consistiu em desviar os olhos da Europa para melhor ver as suas contradições, e as possibilidades que os novos “perigos” ofereciam a Portugal. Ao contrário de alguns compatriotas que tinham esperança num federalismo ibérico, Andrade Corvo recordava a hostilidade popular a tal solução. Com a Espanha, Portugal deveria sustentar boas relações de vizinhança, sem tentações de iberismo. Com o antigo aliado britânico, Lisboa deveria honrar a aliança, mas sem submissões que sacrificassem o seu interesse próprio. Mas o ingrediente inovador de Corvo reside na compreensão precoce – totalmente inédita neste e no outro lado do Atlântico – do papel liderante que os EUA estavam, na sua perspetiva, destinados a assumir no curso dos acontecimentos europeus, e por isso mundiais. Sem margem para evasivas, escreve o ensaísta: “Os Estados Unidos são chamados pelas circunstâncias a representar um grande papel na política do mundo; principalmente se os sucessos da Europa, como infelizmente tudo parece indicar, levarem esta a um período de lutas desastrosas de nação a nação, de violências contra o direito e contra a independência das pequenas nações, a um período de opressão e despotismo” (pp. 205-206).
É extraordinário perceber que, numa altura em que os EUA tinham saído de uma sangrenta guerra civil, apenas há cinco anos, Corvo antecipa a futura intervenção dessa grande potência emergente nos campos de batalha da Europa, para pôr ordem no Velho Continente. Para tal, Washington teria de usar o arquipélago dos Açores como porto de passagem e apoio às suas tropas e respetiva logística. Com um golpe de inteligência, Corvo antecipou que Portugal iria encontrar nos EUA – e isso 48 anos antes da chegada dos primeiros efetivos norte-americanos a Ponta Delgada, no âmbito da I Guerra Mundial – o seu novo aliado externo (para complementar ou mesmo substituir a Grã-Bretanha), para a sua segurança na Europa, e, muito mais tarde, e depois de muitas hesitações americanas, no próprio império africano.
Apesar de esquecida hoje, esta obra notável de João de Andrade Corvo não passaria despercebida aos seus contemporâneos. Entre 1871 e 1879, durante os seus dois primeiros governos, Fontes Pereira de Melo contaria com este visionário para dirigir o Ministério dos Negócios Estrangeiros, acumulando até com a pasta da Marinha e Ultramar (entre 1872 e 1877). Mais do que nunca, para um país como Portugal, com uma liberdade estratégica tão exígua quanto o é a grandeza do seu impacto na história universal, a lucidez política é um requisito de sobrevivência, pois há erros que já não poderemos cometer duas vezes.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, 29 de Junho de 2022, pp.29-30.