Normalmente, conta-se a duração do Estado Novo e da III República a partir dos golpes militares de onde eles surgiram. Nessa óptica, o Estado Novo ainda teria uma vantagem de 3 anos sobre o regime aberto pelo 25 de Abril (48 contra 45 anos). Contudo, se adoptarmos o ponto de vista constitucional é o contrário que sucede. Com efeito, o Estado Novo deve ser contado a partir da entrada em vigor da Constituição corporativa de 11 de Abril de 1933, e não do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que desaguou numa agitada transição, onde pontificaram a Ditadura Militar (1926-1928) e a Ditadura Nacional (1928-1933). De modo análogo, deverá ser a Constituição democrática de 2 de Abril de 1976 a servir como início consolidado da III República, depois de quase dois anos de processo revolucionário. Desta forma, os 43 anos da Constituição de 1976 superam em 2 anos a vigência da Constituição de 1933.
A I República pretendeu garantir a sobrevivência do país, jogando a cartada imperial africana. Por ela arriscou envolver-se no caldeirão europeu da Grande Guerra. Mas o regime caiu sem defensores, depois de 16 anos de guerra civil de baixa intensidade, que a historiografia continua a tratar com uma estranha falta de frontalidade. A República despótica e corporativa de 1933, que traduziu na sua acção o pessimismo antropológico de Salazar, conseguiu afirmar a credibilidade financeira do Estado e preservar o país da segunda guerra europeia (não da ocupação de Timor pelos japoneses), mas manteve-se fiel a um africanismo intempestivo, deixando eclodir a violência em 1961, apesar de todos os avisos e sinais, e desperdiçando para a política 13 anos duramente ganhos em três frentes de guerra pelas forças armadas. Também o Estado Novo tombou sem ninguém disposto a morrer por ele. E a III República? Vencendo a autofagia revolucionária da I República, criou um regime democrático onde se atingiu até hoje o mais elevado grau de respeito pelo Outro no debate político, erradicando completamente a violência de facção. Superando a pulsão autoritária do Estado Novo, do primado da segurança contra as liberdades, a nossa República corporiza o estado de direito mais próximo do seu conceito, até hoje conseguido em Portugal. Contudo, o seu maior desígnio é a sua maior fragilidade. O nosso “apoio externo”, para usar uma expressão de Adriano Moreira, já não é ultramarino, mas sim o projecto europeu. Ao entrar, desde 1992, na vanguarda de um euro perigosamente inconsistente, Portugal tornou irreversível a sua aposta num destino europeu comum. Isso deveria implicar a existência, entre nós, de um consenso existencial permanente entre governos e oposições sobre a prioridade absoluta das reformas do euro. Infelizmente, tanto o governo como a oposição, actuam como sonâmbulos, fazendo das eleições europeias um mero ensaio geral das legislativas. Brincam com o fogo, pois, sem essa reforma, na próxima crise sistémica do euro, a República dificilmente deixará de ser, também ela, atingida pelos estilhaços cortantes da desintegração do projecto europeu.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 27 de Abril de 2019, página 35.